POR QUE O GOVERNO NÃO MUDA A POLÍTICA DE JUROS? - POR DERCIO GARCIA MUNHOZ*

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Dercio Garcia Munhoz*

 

Depois de 15 meses do novo Governo, e sem que surjam indícios de mudanças na política econômica, amplia-se o número de pessoas questionando a conduta governamental. A discussão tem estado centrada nas taxas de juros, colocando na berlinda o Ministério da Fazenda e o Banco Central, que comandam as decisões.

É irreal falar-se que a política econômica tenha algum gestor com comando efetivo, ou que possua alguma direção. Mais apropriado seria admitir que a Fazenda e o Banco Central se deixam comandar pelos humores de um enigmático mercado, que apóia com entusiasmo a passividade do Governo, na medida em que este proporciona a liberdade de movimentação de capitais – o vai-e-vem que trouxe, e levou, perto de US$ 300 bilhões desde 1995, primeiro ano do Plano Real; como também apóia a valorização crescente do dólar, mantido constante para afastar qualquer risco de câmbio sobre os movimentos especulativos decapitais; e festeja os aumentos de impostos e os superávits fiscais, com o que o Governo, se por um lado aprofunda a crise, por outro repete as tentativas infrutíferas de
fazer receitas que cubram as despesas com juros.

Mercado este que se entusiasma com os acordos do país com o FMI, que empresta dólares não para financiar desequilíbrios externos do Brasil, mas, sim, para garantir que, apesar de enfrentar uma dívida impagável, o país não recorrerá ao controle de capitais de curto prazo.

Como, nesse cipoal do não fazer, coloca-se a resistência do Banco Central em reduzir as taxas de juros? É claro que a respostanão é fácil, pois, afinal, nem nesse ponto os responsáveis pela inação mantêm uma versão lógica, justificando a opção; aliás, as versões vão sendo mudadas à medida em que o tempo passa.

Primeiro se dizia que os juros não podiam ser reduzidos porque a inflação ainda não havia sido derrotada, em um raciocínio que, implicitamente reconhecia que a manutenção de juros reais elevados era uma necessidade para atrair recursos que financiassem a dívida externa e a dívida pública.

Noutro momento, o Governo bate de frente com a lógica, recorrendo a dogmas monetaristas insanos, justificando os juros como instrumento para conter a demanda. Isso numa economia estagnada, travada, inviabilizada pelo aumento brutal da carga tributária, numa ação suicida voltada para a tarefa de tentar conseguir pagar os juros dos temíveis gêmeos produzidos pelo Plano Real: o endividamento externo do país e o endividamento público interno e externo.

A preciosidade, atribuída ao presidente do Banco Central, foi informada pelo jornal Monitor Mercantil, de dois de março último:

"...baixar os juros neste momento traria a bolha de crescimento e inflação, resultando na diminuição do nível de investimento no país, o que tornaria medíocre o desempenho econômico do Brasil".

O que significa que, segundo o Governo, crescer provoca inflação, que impede o crescimento. Logo, o melhor é não deixar crescer... Incrível o raciocínio oficial.

O Governo, portanto, fica contente porque, ao não reduzir os juros impede que o país cresça, e com isso evita o aumento da inflação que levaria a um crescimento medíocre. É o mesmo que defender a pena eterna dos condenados, evitando que, cometidos novos delitos, após libertados, voltassem à prisão, o que os privaria da liberdade. Moral da história: ninguém deveria ser libertado após cumpridas as penas, para o próprio bem dos condenados.

O mundo real não conta

Em outro momento a conversa foi outra. Afirmava-se que "a redução dos juros não era condição necessária para que o país voltasse a crescer", fazendo crer, de um lado, que o crescimento poderia ocorrer mesmo com juros elevados e, de outro, citando dados sazonais para concluir que a economia brasileira já registrava o tão falado e desconhecido espetáculo do crescimento:

"... no último trimestre do ano (2003) o crescimento anualizado do PIB chegou a 6,14%, um dos maiores do mundo no período" (presidente do Banco Central, Jornal da Comunidade, Brasília, 19.03.04). Ou seja – deixa-se tudo como está, que tudo vai indo muito bem.

Conclui-se, portanto, que a opção foi pela manutenção da receita do Plano Real I – com a qual os salários perderam um terço de sua participação no PIB, entre 1994 e 2002, com o que o atual Governo vem merecendo o reconhecimento do FMI como aluno aplicado:

"... o Governo brasileiro vem conduzindo a política monetária de maneira sensata" (Gazeta Mercantil, 15.02.04). Não importa a estagnação, o desemprego, o confisco das rendas do trabalho via tributação, e assim transformadas em rendas financeiras. O mundo real não conta. Talvez atrapalhe o raciocínio, dificulte as abstrações.

O ministério da Fazenda, que deveria ser o timoneiro da política econômica global, e das políticas setoriais como monetária, fiscal, cambial, salarial, etc., revela posições e análises tão desconcertantes quanto às do Banco Central, confirmando as suspeitas de que o país navega em vôo cego onde, além do piloto, também o co-piloto entrou em alfa, ficou fora da realidade.

Basta ver as pomposas declarações do ministro da Fazenda na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (Correio Braziliense, 31.03.04), no sentido de que "Os pilares da economia não vão, não podem e não devem mudar", pois, como conclui o documento preparado para a exposição feita pelo Ministro: "... é hora de manter a política macro, que trouxe tranqüilidade e é précondição para o crescimento".

Duplo equívoco

Surpreende quando o Ministro da Fazenda afirma, como o fez há pouco (FSP de 3 de abril), que "... o Brasil é obrigado a fazer uma política econômica austera porque se trata de um país endividado". Importante porque reconhece as restrições que o duplo endividamento impõe, mas preocupante porque dá a idéia de que juros altos e novos impostos levem a alguma solução, e não perceba que, com o Plano Real II, que avança já pelo segundo ano, agrava-se a crise econômica e a crise social.

O panorama visto da ponte do Ministério da Fazenda parece ainda mais confuso, quando o ministro declara que a situação do país só melhorará com a prefixação dos juros da dívida pública, já que a maior parte da dívida é corrigida com juros pós-fixados (FSP de 3 de abril).

Duplo equívoco, já que não se conseguirá destravar a economia brasileira sem mudanças na política monetária, sem a redução da carga tributária e sem medidas paralelas de recuperação da massa de salários; e as receitas do Tesouro podem ser mantidas, ou mesmo crescerem, mas como fruto de aumento da produção – de crescimento da economia, e não através de novos impostos. E o outro engano na posição do ministro é que, em realidade, a maior parte da dívida do Tesouro é remunerada pela taxa Selic – que é prefixada - como ele diz ser o ideal.

A existência da taxa Selic para remunerar títulos do Governo constitui, aliás, um dos pontos mais discutíveis da política de juros, pois o Governo fixa, a priori, que taxa de juros vai pagar sobre os títulos públicos, e com a redução da inflação face ao agravamento da crise, as despesas de juros reais (taxas de juros acima da taxa de inflação) mais aumentam.

Para tornar administrável a dívida pública federal interna e externa – atualmente em torno de R$ 900 bilhões (após compensados os créditos do Tesouro junto a Estados e Municípios e os depósitos mantidos no Banco Central), abrindo espaço para remover o estrangulamento fiscal, o máximo que o Tesouro poderia pagar seria em torno de 3% de juros reais – perto de R$ 30 bilhões anuais.

Mas, com a fixação das taxas de juros pelo BC – a chamada Selic, e ainda a sua rigidez, o Tesouro pagou nos últimos 12 meses (abril/março) juros acumulados de 20,6%, para uma inflação acumulada (IGP-M) de 5,1%. O que significa que o Tesouro pagou, em um ano, perto de 15% de juros reais – cinco vezes as taxas de juros que eliminariam o crescimento em cascata da dívida federal. E o Banco Central não conseguirá, agora, o que nunca se conseguiu no passado, que é a manutenção, a longo prazo, da taxa de câmbio valorizada, como faz hoje, para assim conter o crescimento da dívida externa do Tesouro em termos de moeda nacional.

Se a questão dos juros sobre a dívida pública requer uma revisão profunda, que viabilize um caminho de não ruptura, por outro lado as taxas de juros reais pagas nas atividades produtivas inviabilizam as empresas, individualmente, e a economia como um todo.

Aparentemente, a única solução para os escorchantes encargos financeiros seria a ampliação das disponibilidades de créditos internos para o comércio, indústria e serviços, pois os volumes atualmente emprestados pelos bancos àquelas atividades, com recursos de fontes internas, representa apenas 20% do PIB.

Essa situação de restrição no lado da oferta pode ser entendida quando se percebe que os compulsórios recolhidos pelos bancos ao BC representam perto da metade de todos os empréstimos bancários para os mencionados setores.

A forma confusa como as autoridades econômicas e monetárias enxergam o país, a incapacidade de entender o funcionamento do sistema econômico e as grandes variáveis que influenciam a formação e distribuição da renda, dificultam a definição de uma política econômica. Conseqüentemente, o Governo se mostra incapaz de implantar uma política monetária e de dívida pública que permita safar-se das armadilhas que mantêm em situação de corner, em defensiva permanente, os próprios gestores da economia.

* Professor da Universidade de Brasília