A SAGRADA ALIANÇA (1)

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Para o sociólogo italiano Giovanni Arrighi, o melhor exemplo de nacionalismo bem- sucedido no mundo atual é a China, que faz o mercado trabalhar em favor do estado

Em texto publicado na coletânea "Os Impasses da Globalização" (PUC-Rio/Loyola), o sociólogo italiano Giovanni Arrighi, professor da Universidade Johns Hopkins (EUA), afirma que o principal aspecto político do que chama de "contra-revolução neoliberal" foi a apropriação ideológica, pelos EUA, do antiautoritarismo e do antiestatismo que estavam no cerne do ativismo libertário de 1968. Essa apropriação, acredita Arrighi, pode ser relacionada hoje ao pensamento que exclui tanto a necessidade quanto a possibilidade de Estados ou grupos de Estados terem um papel positivo na direção de um mundo mais igualitário e democrático. Para o autor de "O Longo Século 20" (Contraponto/Unesp), livro em que analisa os ciclos históricos do capitalismo, é verdade que existe uma redução do poder estatal, mas sua fase de protagonismo ainda não está encerrada.
Em entrevista ao Mais!, em julho passado, um dia depois de voltar de uma viagem de estudos à China, Arrighi, 67, afirmou que, embora o nacionalismo não tenha mais o sentido que tinha há 40 anos, Estados como o Brasil podem fazer muito tanto para reduzir as desigualdades internas quanto para combater o desequilíbrio entre os países do Sul e do Norte. (Cláudia Antunes)

Ainda faz sentido falar em nacionalismo quando o poder dos Estados é tão limitado? 
O fato de termos esse novo estágio de integração global não significa que os Estados não tenham poder. Pode significar que o velho tipo de protecionismo ou a industrialização baseada na substituição de importações tenha menos possibilidade de funcionar. O Estado -e particularmente grandes Estados como o Brasil- sempre pode influenciar o impacto social das forças do mercado. Ele pode se alinhar com o capital e os poderosos e fazer o trabalho e os pobres competirem pelo lucro do capital ou pode fazer o capital e os poderosos competirem em benefício do trabalho e dos pobres.

O Estado brasileiro pode fazer muito para reduzir a desigualdade, além de promover a educação, a saúde e todas essas coisas que fariam o país mais competitivo. Externamente, há a divisão Norte-Sul, e aí de novo o Estado pode adotar políticas diferentes. Nos anos 1990, criticava-se o fato de o Estado brasileiro não ser duro o suficiente em relação ao Norte. O que está emergindo agora, esse eixo do Sul que parte do Brasil para a África do Sul, a Índia e a China, não sei se pode chamar de nacionalismo, mas é o tipo de aliança para fazer o mercado mundial funcionar mais em favor do Sul, em vez de se dobrar aos mandamentos do Norte.

No passado, acreditava-se que existia uma burguesia cujos interesses eram diferentes daqueles do capital internacional. Essa contradição ainda existe? 
Claro. Há contradições mesmo dentro da burguesia dos EUA, do Norte, e mais ainda entre as burguesias do Sul e do Norte. Mas a pergunta difícil é como essas contradições são definidas e para quais objetivos políticos. Seria preciso olhar para o que a burguesia nacional faz em termos de investimentos e sua posição em relação a políticas reformistas, se a mobilização nacionalista é feita para reforçar seus privilégios ou é uma maneira de se proteger de burguesias mais fortes, mas que traz benefícios para as classes subordinadas. De modo geral, as duas posições extremas -tanto a de dizer que o Estado não tem mais poder, que não há mais burguesia nacional, quanto a que diz o contrário- estão erradas.

Embora o governo do Brasil busque novas alianças e mercados, internamente mantém a ortodoxia econômica. 
Certos limites financeiros são reais e têm de ser respeitados. Mas é do interesse nacional dos países do Sul respeitá-los em seus próprios termos, em vez de se submeterem às orientações das instituições financeiras internacionais. A irresponsabilidade financeira não ajuda ninguém e não ajudará os países do Sul, só os tornará mais endividados. Eles devem manter suas finanças em ordem sem precisar seguir regras que não são do seu interesse. É melhor ter uma disciplina auto-imposta.
Ao mesmo tempo, em vez de darem todos os tipos de incentivo ao capital estrangeiro, é mais produtivo, para consolidar uma posição competitiva, promoverem reformas que criem uma força de trabalho educada, saudável e empreendedora.

Para alguns analistas, a característica repressiva dos Estados aumentou nos anos recentes, na medida em que eles se viram incapazes de atender às demandas sociais. Como o senhor vê essa posição? 
Não vejo isso acontecendo nos grandes Estados do Sul. Talvez na Índia exista um regime mais repressivo do que há dez,15 anos, mas que ainda funciona bem como democracia política. A África do Sul é certamente muito menos repressiva do que era. A Coréia do Sul era um regime militar e hoje é uma democracia. Do Brasil, nem se fala, e, quanto à China, é interessante como, apesar da ausência de uma democracia formal, você não vê a polícia nas ruas. O que ocorre é que os EUA se tornaram mais militaristas e mais repressivos internamente, o que está ligado ao 11 de Setembro e a como ele foi usado por este governo em particular. O mundo pode estar mais caótico, mais violento, mas não mais repressor.

No Brasil há pessoas que vêem a China como um exemplo, enquanto outras vêem o regime como uma máquina de produzir crescimento sem respeito ao direitos dos trabalhadores. Qual a sua opinião? 
Estou mais com a primeira posição, exceto que não acho que modelos possam ser imitados. A China tem uma história e uma geografia particulares e um modelo próprio que a faz bem-sucedida neste momento específico. Trata-se de ter relações com ela, agora que é o mercado mais dinâmico. Eles fizeram reformas econômicas, mas nunca, exceto nas negociações para entrar na OMC (Organização Mundial do Comércio), fizeram reformas impostas de fora. A China sempre foi fiscalmente responsável e até agora seu sucesso se deve a isso e ao fato de ser muito ativa, em fazer o que é melhor para o país, e não para os EUA ou o Japão. Eles conseguem investimentos não principalmente porque a força de trabalho vive sob repressão, o que é verdade até certo ponto, mas porque ela é educada e saudável.

A imagem de exploração do trabalho e de desrespeito aos direitos civis não corresponde ao que o senhor viu? 
Você pode ter todos os direitos civis que quiser e ser superexplorado. E pode não ter direitos formais, mas ter uma história e uma tradição que determinam as relações sociais. Lá, o que se constata é que, apesar de haver "sweatshops" [pequenas fábricas onde os operários trabalham muito, em péssimas condições e recebem pouco], como há nos EUA, talvez em maior quantidade, nas fábricas as relações não são de superexploração. A competitividade do trabalho chinês não se deve tanto à repressão, mas ao fato de os trabalhadores serem autodisciplinados e com capacidade de autogestão.

A atual liderança americana é ultranacionalista? 
Nacionalista, certamente. Nos EUA, eles gostam de se intitular patriotas, e nesse aspecto não há muito diferença entre Bush e os democratas, eles apenas têm estratégias diferentes. A dos democratas é mais inteligente. Essa é a questão. O Brasil pode ou não praticar o nacionalismo, mas certamente os EUA praticam.

(1) Publicado no Caderno Mais, do jornal Folha de S.Paulo, 19 de setembro de 2004.