AS ORIGENS DA CRISE DO RIO - POR JOÃO PAULO DOS REIS VELLOSO* - EX-MINISTRO DO PLANEJAMENTO

Facebook Twitter WhatsApp

Em setembro, o Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ realizou o primeiro seminário A Crise do Rio, que, reunindo historiadores, economistas e estudiosos da vida do Rio de Janeiro, deram início a um debate sobre a história do estado fluminense e de sua capital – ou do antigo Estado da Guanabara: as razões mais profundas que podem contribuir não apenas para a compreensão sobre o momento atual do Rio, como lançar luz sobre suas perspectivas. Neste e no próximo número do JE, estaremos publicando algumas intervenções que marcaram o seminário, como uma contribuição para o debate sobre as soluções e alternativas para a cidade e para o Estado do Rio de Janeiro.

"Subestimamos o ovo da serpente"

João Paulo dos Reis Velloso* - Ex-ministro do Planejamento

O título do seminário é A Crise do Rio e eu abri o jornal, hoje, de manhã, e encontro esta manchete: "Gás vira monopólio do tráfico na Rocinha". Até algum tempo atrás eu dizia: esta história de narcotráfico é um estado paralelo. Mas estamos vendo que não é bem assim. É um Estado superior ao Estado, porque ele definiu que queria o monopólio do gás no Rio. Não foi, pois, um pacto no sentido de entidades, foi o tráfico que decidiu acima do poder do Estado.

Eu começo dizendo alguma coisa sobre a fusão Guanabara-Estado do Rio e vou cobrir três pontos. O primeiro se refere à fusão, nos primeiros meses do Governo Geisel, e podemos dizer que a motivação da fusão foi dupla. Em primeiro lugar, evitar que continuasse no Brasil uma tendência a uma predominância de um estado – São Paulo. A idéia era ter um segundo pólo de desenvolvimento e, talvez, em Minas Gerais, um terceiro, e alguma coisa no Nordeste. Ao lado da fusão, fez-se a divisão do Estado de Mato Grosso, dentro da mesma idéia. O potencial do Mato Grosso era enorme porque depois dos esforços coordenados pelo Ipea, mostrando o potencial dos Cerrados, que realmente mudaram a face e abriram uma nova fronteira para a agricultura brasileira, a idéia era evitar, desde logo, que houvesse um futuro São Paulo. Outra motivação era dar dinâmica econômica própria ao Estado do Rio de Janeiro, e se recuperar a idéia de que o Rio não era mais capital federal. Eu conduzi, no Planejamento, os estudos econômicos e, principalmente, o deputado Célio Borja, que era o líder do Governo na Câmara, conduziu os estudos políticos. Era a idéia de um pólo industrial, com as óbvias potencialidades do Rio de Janeiro, principalmente, se levarmos em conta os centros de excelência existentes, particularmente, na cidade do Rio.

Naquela época, se fizeram os Centros de Tecnologia na área de infra-estrutura, energia elétrica, petróleo, tudo lá no campus (Fundão), e se pensava ser possível uma certa parceria entre universidade-indústria, uni-versidade-empresa, mas também um pólo agrícola, e teve até o programa de desenvolvimento do Vale do São João, com um programa que instituía um projeto de irrigação da área. A gente vivia citando – "mas não é possível, o Rio de Janeiro importa hortigranjeiros de Mogi das Cruzes. É preciso acabar com isto, não tem o menor sentido" – e até hoje importamos alface de São Paulo. E, obviamente, a construção naval. Depois veio o pólo do petróleo, porque a descoberta, nós já tínhamos a informação sobre a alta probabilidade de um campo gigante de petróleo em Campos. Só se sabe se tem petróleo quando encontra. De modo que um pouco era esta a idéia.

Ovo da serpente

Mas, talvez, a percepção ainda fosse fraca com relação a outros aspectos, pois havia ali algum problema. Um problema de um sistema político com tendências altamente clientelísticas, que facilmente produz maus governos.A minha conclusão é que a crise do Rio de Janeiro tem muito a ver com os problemas deste sistema político e de uma sucessão de maus governos. Certamente, nós subestimamos aquele ovo da serpente, porque há uma
responsabilidade muito grande, um envolvimento muito grande deste problema todo da área político-administrativa com o fato de o Rio de Janeiro até hoje não ter conseguido realizar o seu potencial. E nós devemos começar a entender a crise do Rio de Janeiro por aí, e buscarmos soluções partindo daí.

Pois veio o governo Faria Lima, que foi bom, do ponto de vista administrativo, mas que tinha aquela aversão à política, o que é um erro. O sistema político existe, ele tem poder, ele tem funções, ninguém pode pretender governar sem lidar normalmente com o sistema político. E em seguida começou a sucessão, não vou dizer que todos os governos foram maus, mas talvez dê um prêmio a quem me convença que nem todos o foram. Talvez, um, ali, possa ter sido razoável. Talvez. Sempre se deve dar o benefício da dúvida ao réu, nunca esquecendo, governos eleitos por nós. Quer dizer, nós somos parte desta crise.

Falando nessa sucessão de maus governos, eu diria que estava faltando apenas um ingrediente, que era o baixo clero do partido majoritário da maioria de governo ter ligações com o jogo do bicho e, mais adiante, com o narcotráfico, crime organizado, como queiram chamá-lo, até que um dia isso come-çou a acontecer. Quando ocorreu, nós passamos a ter todos os ingredientes para o que podemos chamar de "guerra da Rocinha", ou "Estado superior ao Estado", é uma questão de preferência. O Deng Xiao Ping (líder comunista chinês) gostava de dizer: não importa saber se o gato é preto ou branco, o que importa é que ele coma ratos.

Arranjos produtivos

Então, o que importa é o animal que nós temos, que é esta sufocante presença da violência, e vamos falar claramente, influência do narcotráfico, do crime em geral, sobre a vida do cidadão comum do Rio de Janeiro. E tudo isso, todo esse imbróglio, impede que se realize o potencial. Minha última palavra é exatamente sobre o fato de que o Rio de Janeiro
continua a ter um enorme potencial de desenvolvimento econômico, que é fácil de identificar, a começar pelos setores de tecnologia avançada, porque temos todos os elementos para isto, a começar pelos centros de excelência que podem constituir o que se chama hoje de inovação, parque tecnológico, que nome tenha, como há alguns em São Paulo, pelo menos três ou quatro, mas há também em Santa Rita de Sapucaí, em Minas Gerais. São 36 empresas ligadas a um centro de comunicações; como há em Pernambuco, o que se chama Porto Pernambuco, que é um grande pólo de informática.

Se Pernambuco, por causa da universidade, pode fazer isso, por que o Rio de Janeiro, com tantas universidades, não pode ter até alguns clusters menores, no interior, além de potenciais arranjos produtivos locais que, na verdade, são aglomerados produtivos? Clusters de pequenas empresas, aglomerados de pequenas empresas, não necessariamente
para alta tecnologia, em geral não são de inovação de alta tecnologia. E o potencial de agricultura, que continua, os serviços em geral, principalmente, os mais sofisticados, para não falar do turismo que, obviamente, é prejudicado pelo problema da violência.

E uma referência absolutamente necessária, a questão social e a questão de segurança. Não há quem possa dizer que a questão social é que leva ao problema da segurança. Não. Mas que estão interligados, certamente. E devemos procurar as saídas por uma ofensiva integrada em questão social e de segurança, ou seja, os programas de segurança para as favelas e periferias devem conter as políticas sociais. Digamos, um negócio tipo Favela-Bairro, mas não é só para fazer urbanização de favelas, não. É para transformar a favela em parte da cidade, não dentro daquilo que continua e que Zuenir Ventura chamou de "a cidade partida". Isto é um crime contra a cidade, contra nós. Favela é um bairro como um outro qualquer, mas é preciso levar o Estado às favelas, às periferias e, particularmente, as políticas sociais, de educação, saúde, tudo isso. 

"Uma memória sempre a nos assombrar"

Marly Silva da Motta - Historiadora do CPDOC/FGV

Quando observo a "crise" do Rio de Janeiro acho que uma imagem que é muito recorrente é a do Rio como refém. E que está presente nos jornais, na mídia, de um modo geral. Refém das balas perdidas; dos flanelinhas, da Cedae, porque de vez em quando arrebenta um cano e a gente fica presa, sem poder andar de um lado para o outro; dos políticos federais; estaduais. Então, esta idéia – e aí estou falando especificamente da cidade – do Rio como refém acho interessante analisar deste ponto de vista. Mas talvez a gente possa pensar o Rio como refém do passado. Acho que o Rio é refém da memória de um passado que, em geral, é entendido como a "idade de ouro". A gente entende que o período de capital federal, do estado da Guanabara, como algum período em que a cidade viveu muito bem, numa situação muito boa.

Daí, a necessidade que a gente tem – nós, da cidade do Rio de Janeiro – de se libertar do
peso deste passado. Por isso, uma proposta que tenho, nesta apresentação sobre a crise do Rio, é tirar do debate esse lugar atemporal. Parece que os debates estão sempre num lugar que a gente não consegue determinar no tempo; parece que sempre o Rio esteve numa crise. Mas acho queexatamente a atemporalidade em que esses debates costumam ocorrer sobre a crise do Rio os tornam presa fácil de uma disputa que é pela memória, e é uma disputa política também.

Um segundo lugar, e como decorrência desse objetivo de tirar os debates da atemporalidade, é exatamente conferir historicidade aos debates sobre a crise carioca. Foi
exatamente o que nós chamamos no livro "A Política Carioca em Quatro Tempos", produzido pelos pesquisadores do CPDOC. Qual foi o ponto de partida do livro, que também é ponto de partida da minha apresentação? É a necessidade de um choque de história na memória do Rio de Janeiro. O que chamo de choque de história é colocar o debate sobre a crise do Rio de um ponto de vista histórico.

O Rio na Constituinte de 1890

Começo, por exemplo, pelo debate na Constituinte de 1890, a primeira constituinte republicana. Um dos pontos era a possibilidade de tirar a capital do Rio de Janeiro, transferir a capital. E os dois pontos principais que mobilizaram esse debate, em 1890, foram, por um lado, os interesses políticos locais, ou seja, de um lado, no Congresso Constituinte, se tinha uma bancada fluminense que defendia a reincorporação desta cidade ao Estado do Rio de Janeiro; do outro, uma bancada carioca, liderada pelo senador Tomás de Aquino, que defendia a transformação da cidade do Rio de Janeiro em Estado da Guanabara. É, então, a primeira vez que aparece, no artigo terceiro, a previsão da transferência da capital.

Ao lado disso, de interesses políticos locais, se tem uma série de representações, de imagens construídas sobre a ex-capital Federal. Por que se dizia que a capital teria que sair
do Rio? Porque era uma cidade desordeira, agitada, estrangeirada, pela grande quantidadede imigrantes portugueses que havia na época, ameaçador a – era a cidade da desordem. Então, não poderia ser a capital. Está presente nos debates da Constituinte e na imprensa. Há a proposta do senador fluminense Quintino Bocaiúva, de levar a capital, que se chamaria Cidade de Tiradentes, para o Planalto Central. A verdade é que o artigo terceiro da Constituição de 1891 prevê a transferência da capital para uma área do Planalto Central, e que o Rio se transformaria em Estado da Guanabara, com a vitória da bancada carioca.

Nas Constituições de 34 e de 46, em ambas, manteve-se a indicação da transferência para o Planalto Central e a transformação do Rio em Estado da Guanabara. A de 37, a Polaca, foi a única que retirou esta possibilidade, de tirar a capital do Rio. Claro, sabemos bem, porque dentro do projeto Varguista, de centralização autoritária, o Rio deveria se tornar, e efetivamente se tornou, a sede do Estado do Rio. O debate mais aceso, sabemos  todos, é ao final dos anos 50, com a decisão do Governo Juscelino, de transferir a capital. E aí acho que a gente tem que ver as duas pontas da transferência da capital.

De um lado, a construção de Brasília, sim, e o impulso para ocupação do Centro-Oeste e todo o projeto sócio-econômico e geopolítico de expansão capitalista, enfim, tudo aquilo que os economistas e os políticos costumam bem estudar, com todo o interesse. A outra ponta, era a avaliação de que o Rio, em crise, era isto que era dito, não teria mais condições de sediar a capital do país. Ou seja, o Rio não poderia mais exercer a condição de capital. Tanto porque era insegura para os presidentes, como por alguma coisa que é recorrente para nós, o conflito político e administrativo entre as esferas federal e municipal, que havia se esgotado politicamente, também. O Rio era todo politizado, e não poderia exercer, como deveria ser, o papel de capital federal.

Belacap versus Novacap

Em 1960, a capital foi transferida para Brasília, e aí o que fazer do Rio? O que o Rio iria ser? Se reincorporaria ao Estado do Rio? Observem que não estou usando o termo "fusão", porque não era o termo usado. O termo usado em 1960 era "reincorporação". E reincorporá-lo como? Como capital do Estado do Rio? Havia políticos que achavam que não, que o Rio deveria ser uma cidade comum, que a capital poderia continuar sendo Niterói, por exemplo. Havia propostas da cidade nacional do Rio de Janeiro. Quer dizer, tirar o Rio de Janeiro do conjunto federativo normal e transformá-la numa cidade nacional. Ou, então, manter dois distritos federais: o Rio, como a capital cultural, e Brasília, como a capital política. Foram propostas discutidas no Congresso. Ou, então, porque prevista constitucionalmente, a transformação do Rio em Estado da Guanabara.

Mas que estado seria a Guanabara? Um estado comum, como outro qualquer? Não. A proposta que acabou vencendo foi uma Cidade-Estado e, portanto, um estado com um lugar muito especial na Federação, que vim a chamar de um Estado-Capital. Primeiro governante: Carlos Lacerda. O projeto dele, na verdade, me parece, acabou se dividindo em duas partes, que a gente pode identificar até num governo único: se você tinha uma cidade-estado, uma cidade que lembrava a capital, e o estado que apontava para a nova situação federativa, se tinha a opção: ou se existia simbolicamente, economicamente, politicamente, no pólo cidade, e aí se estaria, na verdade, reforçando a manutenção do apel do Rio como capital, de fato, ou se investiria no pólo estado, que transformaria a Guanabara num estado federativo.

Acho que o Lacerda, até por interesses políticos, pelo próprio lugar que tinha na política, como um futuro e potencial candidato à Presidência da República, vai investir maisnaquilo que ficou conhecido como "Belacap", ou seja, na capital bela, em grande medida para se contrapor à "Novacap", que era do seu potencial rival, em 1965, Juscelino. Então, o primeiro governo da Guanabara não investiu no seu pólo estado; preferiu mais investir na sua função cidade. Ao contrário de Chagas Freitas – o ovo da serpente, em boa medida, era o Chagas Freitas: o investimento na política local, investimento nas redes locais, nas redes clientelísticas.

O terceiro governo da Guanabara, o último, de Chagas Freitas, investiu no processo de efetiva estadualização da Guanabara, que foi interrompido, exatamente, pelo processo de fusão, que, me parece, no primeiro momento, a transferência da capital, a efetiva transferência da capital, então, se deu, por volta de 1970, com a transformação de Brasília na capital de fato. Acho que um dos pilares do projeto militar foi a transformação de Brasília na capital efetiva, de fato, do Brasil, tirando da Guanabara essa condição de capital de fato.

Primeiras idéias de desfusão

Município do Rio de Janeiro, ano de 1975, Faria Lima. O João Paulo foi extremamente feliz ao identificar, como um dos grandes problemas, a apolitização do Almirante Faria Lima. Colocar um militar apolítico, que dizia com todas as letras que a sua grande credencial era o fato dele ter horror à questão da política, complicou muito o ponto de partida da fusão. Como botar um apolítico para enfrentar a tarefa de integrar dois estados extremamente politizados – a Guanabara, que tinha Chagas Freitas, e o Estado do Rio, que tinha Amaral Peixoto, dois políticos da mais alta estirpe, no sentido de lidar com a política?

Então, para lidar com duas raposas, experientes na política, o Governo Geisel colocou um militar – nada contra; contra, sim, na medida em que se caracterizava como apolítico. Isso,
me parece, vai exatamente começar uma certa percepção que a crise do Rio tinha a ver com a sua perda de autonomia política. Então, voltou novamente a idéia de que "tínhamos autonomia, e a perdemos". E é interessantíssimo que o prefeito Israel Klabin, do Rio, quando volta Chagas Freitas ao governo, em um outro Estado do Rio de Janeiro, declare, em entrevista a nós, que só aceitou ser prefeito para fazer a desfusão e restabelecer o que seria a verdadeira identidade do Rio de Janeiro. O segundo prefeito do município do Rio de Janeiro se declara tendo sido guindado ao posto pelo governador Chagas Freitas para fazer a desfusão e restaurar a verdadeira identidade. Parece-me, e não é à toa, que a década de 1990 tenha sido marcada pela percepção de que a crise do Rio tem origens mais profundas.

Nós tivemos um movimento muito interessante, que eu acho que, de certa maneira, não foi bem sucedido. Se nós não temos perspectivas de futuro, porque identificamos nossos problemas no passado; se os nossos problemas estão no passado, as soluções também estão no passado. Se hoje tivemos um movimento para trás, no intuito de que se lá tínhamos sido vítimas – vítimas de sucessivas transformações em nosso estatuto jurídicopolítico: deixamos de ser capital, deixamos de ser estado, depois nos transformamos no município do Rio – há no passado uma percepção sucessiva de perdas. Ora, se é no passado que estão as perdas, o nosso movimento foi exatamente de buscar o perdido.

Saudades da Guanabara

Em 92, no movimento Rio Capital, por ocasião da ECO-92, ainda agarrando a idéia de que poderíamos voltar a ser capital, houve todo um movimento de por que não voltar o Rio a ser capital federal, já que, durante a ECO-92, as coisas funcionaram totalmente? Em 95 e 96, começa um outro movimento, de Saudades da Guanabara, com a música de Moacyr Luz, Aldir Blanc e P.C. Pinheiro. Aí me parece que é nesse encontro dessa saudade da Guanabara que vem a recuperação do Carlos Lacerda como modelo de governante estadual. Não é à toa, portanto, que César Maia, em 92, e o Conde, em 96, procuraram se identificar com os seguidores daquele paradigma de governante. E com esta recuperação vem a idéia de que a Guanabara, sim, seria a nossa verdadeira vocação, isto reforçado pelos próprios governantes. É interessante que o próprio Conde, à época prefeito, numa distribuição do ICMS pelos municípios que o Marcello Alencar teria feito, prejudicando a cidade do Rio, levanta a possibilidade de o Rio ser umente federativo especial: tirá-lo do Estado doRio e transformá-lo numa cidade nacional, como era proposto em 1960.

Em 2002, a eleição da Rosângela Matheus me parece que acirra, de certa maneira, a idéia de que, no passado, deveria se buscar uma solução, porque teria vindo a eleição de dois governadores do interior do Rio (Anthony Garotinho, o primeiro). É interessante que uma semana depois da eleição da governadora já se tem o lançamento do movimento "Guanabara já" e, logo em 2004, a questão da autonomia carioca, num esforço desses dois movimentos, que foram identificados pela mídia.

Eu fiz um levantamento das colunas assinadas no jornal O Globo, e também das cartas publicadas, e aí é interessante se ver esta situação, dos que se levantavam pró e contra a volta da Guanabara e que existe um solo comum, tanto dos que estão a favor da Guanabara, como os que são contra: é uma memória pontuada de representações construídas ao longo do tempo sobre o passado do Rio e suas relações com o Estado do Rio.

Encerrando, a pergunta que faço é a seguinte: o que fazer, diante deste debate sobre a crise do Rio, que vai ao passado? O que fazer com esse debate que parece ter sete vidas? Minha sensação é que, de novo, a gente sempre tem a esperança de que vai surgir alguma
coisa nova no debate sobre a crise do Rio, mas, na verdade, temos a memória do passado a imperar. Eu acho que a primeira coisa é, antes de tudo, mostrar que os eventos da história do Rio são sugados para o terreno fluido e afetivo da memória e, pior, foram feitos prisioneiros de um círculo vicioso que torna a cidade refém de um passado percebido como idade de ouro, mítica, um passado da felicidade. E, por isso mesmo, ficamos submetidos ao pipocar do noticiário do dia-a-dia e incapazes, portanto, de projetar o nosso futuro.

A solução, eu acho que é uma só: o passado do Rio tem que ser deslocado do terreno da memória, aonde sempre vai e volta, e tem de ser lançado no território da história. Ele tem que virar passado. A volta da noite acabou, pois cada noite nunca acaba. Tem que botar no passado, na história, e não na memória que sempre volta. Tirar da memória, botar na história para que ele pare de nos assombrar com esse passado, que já está superado. É com esse movimento que acho que, talvez, possamos analisar a nossa crise de maneira mais crítica e sofisticada. Até mesmo para concluir pela viabilidade da volta da Guanabara, ou não.