AS CAUSAS DA DESIGUALDADE DE RENDA NO BRASIL - RODRIGO MENDES GANDRA*

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Rodrigo Mendes Gandra*

 

O artigo a seguir é um resumo do trabalho com que o autor venceu o XI Prêmio Brasil de Economia, do Conselho Federal de Economia, na categoria de dissertação de mestrado.

"Quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando"
Walter Lippman

Muito além de questões éticas, morais,religiosas, partidárias (...) se preocupar com questões distributivas não significa, por si só, ser igualitarista, socialista, comunista, altruísta, "etc.ista"; é, sim, uma aclamação à racionalidade. Do ponto de vista econômico, a desigualdade de renda extrema seria indesejável por afetar negativamente algumas variáveis cruciais ao bem-estar social, tais quais: crescimento econômico, criminalidade e nível de pobreza da população. Reduzir a desigualdade de renda extrema é perfeitamente compatível com o bom funcionamento de uma sociedade que vive sob o modo capitalista de produção.

No Brasil, a desigualdade de renda apresenta características bem peculiares.

• Em primeiro lugar, tomando por base diversos indicadores usuais (i.g.: Índice de Gini, Índice de Theil, +20/-20), o Brasil é um dos países - senão aquele - que apresenta o maior grau de desigualdade de renda do mundo. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostras e Domicílios (PNAD) do IBGE, os indivíduos 10% mais ricos da população se apropriam de cerca de 50% do total da renda das famílias, e, por outro lado, os 50% mais pobres da população se apropriam de pouco mais de 10% da renda total das famílias. O seleto grupo composto de 1% mais rico da sociedade concentra uma parcela superior à apropriada pelos 50% mais pobres da população, que possuem 10% da rendanacional. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano, de 1999, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pelo Índice de Gini só a África do Sul e Malawi têm um grau de desigualdade maior que do Brasil.

• Outra característica é que a desigualdade de renda, desde 1977 até hoje, com exceção da conturbada década de 1980 (período de "estagflação"), se manteve constante. Ou seja, ela não aumenta e nem diminui de forma significativa.

• Ainda, dividindo a população em 10 faixas de renda, nota-se que a desigualdade é maior no décimo superior da distribuição (ou no décimo mais rico da população). Uma vez que o Brasil é um país de renda per capita intermediário, se comparado aos outros países, não se pode dizer que o fenômeno da pobreza brasileira - pelo critério renda - seja basicamente oriundo da escassez de recursos. Deve-se concordar com o especialista Ricardo Paes de Barros, para quem "o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres". Assim, há um consenso entre os economistas especialistas a respeito de que a forma mais eficiente para se reduzir a pobreza seria via redução da altíssima desigualdade de renda brasileira (sem descartar a importância do crescimento econômico no processo). Daí deriva a relevância do assunto.

Tese ingênua de Langoni

Ao contrário da década de 70, quando ainda havia uma "controvérsia" acerca do aumento da desigualdade de renda no Brasil, hoje em dia, infelizmente, percebe-se uma falta de debate sobre as causas desta estabilidade desagradável. Adota-se como um totem a chamada Teoria do Capital Humano (acrescida de algumas variações) para explicar a perpetuação da extrema disparidade de renda entre os indivíduos.

De acordo com a maioria dos pesquisadores, inspirados pela neoclássica tese de Langoni (1973), a desigualdade de renda no Brasil é alta devido à escassez de mão-de-obra qualificada vis-à-vis a expansão tecnológica que aumentaria a demanda por trabalhadores qualificados. Em outras palavras, como a população brasileira é muito heterogenia, em termos educacionais, como o nível de escolaridade é relativamente baixo, e como a tecnologia expande-se de uma forma relativamente veloz, aqueles poucos indivíduos qualificados tendem a receber os maiores salários e a concentrar maior parte da massa salarial. Diz-se que o sistema educacional não oferta mão-de-obra qualificada no mesmo ritmo do aumento da demanda por trabalhadores qualificados.

Com base nisto, a maioria dos pesquisadores acredita que, à medida que houvesse uma expansão educacional, a heterogeneidade cairia e a desigualdade de renda do trabalho também. Como a expansão educacional, desde a década de 70, evoluiu de forma muito lenta, esta tese continua sem refutações empíricas e, portanto, sustenta-se academicamente.

Mas ainda que esta tese tenha alguma significância explicativa, ela é muito ingênua, pois não leva em conta que, em países como o Brasil, devido à forma de inserção no mercado externo (como um país não-exportador em massa de novas tecnologias), por exemplo, faltam postos de trabalhos de qualidade. Ou seja, o crescimento brasileiro não é puxado por setores intensivos em geração de novas tecnologias. Há de se notar que toda argumentação de geração de uma força de trabalho mais qualificada, para que se eleve a renda e para que se reduza a desigualdade salarial, tem como hipótese a absorção irrestrita da mesma pelo mercado de trabalho.

Um indício de que o Brasil não está gerando postos de trabalho de boa qualidade é que, de 1991 a 1998, o percentual de trabalhadores ocupados no setor informal (onde a precariedade é maior) passou de 20% para mais de 55%2. Barros, Camargo e Mendonça (1997:25)3, quando analisam a região metropolitana de São Paulo, com base nos dados da PME de 1982 a 1993, mostram que a probabilidade de se estar desempregado quando se é um trabalhador qualificado é menor do que quando se é um desqualificado. Contudo, o tempo de duração média do desemprego aumenta (e vem aumentando ao longo do tempo) com o grau de escolaridade (e com a experiência). Isto é, uma vez que as pessoas de nível superior (e mais experiente) fiquem desempregadas, maior é a probabilidade de elas ficarem mais tempo procurando emprego. Tal dado sugere, então, que a economia brasileira não está gerando tanto emprego de boa qualidade capaz de suprir sua demanda de imediato.

Mesmo que o sistema educacional público no Brasil seja ineficiente e mal focado, e mesmo que o sistema de crédito para educação seja imperfeito, Barros, Ramos e Reis (1992)4 e Pastore e Zylberstajam (1992)5 mostram que a mobilidade social no Brasil, com base nos dados das PNADs da década de 80, é alta. Ou seja, eles mostram que é normal o fato das pessoas mudarem de classe de renda. Se isto é verdade, se há as pessoas ascendendo socialmente, isto acontece independentemente da situação do sistema educacional. Isto é, os postos de trabalho criados desde o início da década de 80 não necessariamente são intensivos em educação formal. Há postos de trabalho de boa qualidade que dependem muito mais das habilidades natas individuais e de treinamento específico do que de educação formal, i.g., atletas e artistas.

Pastore e Zylberstajam (1992: 211) reconhecem que a aquisição de outros postos depende
dos contatos individuais e da riquezainicial (background familiar). Assim, uma vez que o país não se desenvolva tecnologicamente (uma vez que não assuma o papel de vendedor de tecnologias) e uma vez que não se venda serviços especializados, a educação formal não assumirá o papel de principal gerador de mobilidade social.

Como em qualquer outro investimento, a educação formal envolve incerteza forte (a la Knight-Keynes) quanto à distribuição de probabilidades do fluxo de renda futuro. Ou seja, ela não garante a ninguém uma remuneração esperada, mais ainda, ela não garante nem um emprego na área em que a pessoa se qualificou. Quer-se dizer com isto, que a educação não é condição suficiente para que um indivíduo aufira um nível de renda desejado. Níveis elevados de renda requerem, num sentido keynesiano, animal spirit frente ao cenário de incerteza forte, ou num sentido maquiaveliano, virtù (sem deixar de lado a questão ligada à fortuna, ou ao acaso). Ganha mais quem arrisca mais, e os indivíduos que partem de uma dotação inicial mais elevada podem ser tão agressivos, como aqueles indivíduos que não têm nada a perder.

Os economistas neoclássicos

O enfoque da Teoria do Capital Humano (e suas derivações) restringe-se basicamente à explicação do diferencial de apropriação da renda do trabalho. Contudo, há de se notar que a massa salarial vem perdendo participação no PIB, pois, entre 1990 e 1996 ela caiu de 45% para 38%. Não se percebe nenhum esforço acadêmico de compatibilização da análise
funcional da renda com o enfoque pessoal; o que seria importante uma vez que a massa de lucros e juros vem aumentando a representação na renda agregada desde então.

Listando a maioria dos papers publicados nas principais revistas de economia do país, infelizmente, parece que a desigualdade de renda é um problema que não tem a menor relação com o funcionamento do sistema capitalista. Os modelos atuais encaram a desigualdade de renda como uma derivação da estrutura de determinação de preços da economia. Salvo pequenas imperfeições (discriminação e segmentação) no mercado de trabalho e de crédito, os mercados ainda sim seriam basicamente eficientes. A causa fundamental para a desigualdade de renda (sendo a heterogeneidade educacional a principal) seria algo extra-econômico.

Mais ainda, os economistas neoclássicos defendem a tese de que a maior parte da distorção gerada sobre a distribuição de renda no Brasil deve-se à omissão dos governos
em investir no sistema educacional (o que, em parte, não deixa de ser verdade). Quanto à explicação da determinação de desigualdade educacional, já se pode achar alguns modelos que atrelam as variáveis políticas às variáveis econômicas. Mas, estes novos modelos são vagos por classificarem a sociedade em elites e não-elites, ignorando assim a origem da renda (a visão funcional e organizacional da sociedade).

Mediante estimativa de uma Curva de Lorenz (para 42 países selecionados), Maddison (1995)6 mostra que a disparidade de renda entre as pessoas aumentou, entre 1900 e 2000. Assim, olhando para a tendência mundial, não é possível tratar a desigualdade brasileira como algo independente do que acontece no mundo capitalista como um todo ou
como algo independente do padrão de desenvolvimento econômico optado pelo país.

A desigualdade de renda não pode ser explicada apenas por modelos que levam em conta a estrutura da oferta e demanda no mercado de trabalho. Deve-se olhar também para a composição estrutural dos lucros, das aplicações financeiras, da riqueza, das regras tributárias, da taxa de juros, da organização funcional e organizacional da sociedade. No que diz respeito ao papel da riqueza na determinação da desigualdade de renda, pode-se dizer que, além da carência de dados confiáveis a respeito, os economistas, por questão de pragmatismo, consideram que a distribuição do ativo, educação, seria mais fácil (ou menos traumático) de ser realizado que a distribuição de terras, máquinas, ativos financeiros, etc. Por isto os economistas geralmente analisam o papel da educação dentro do mercado de trabalho e negligenciam outras dimensões. Economistas neoclássicos, em geral, têm horror às políticas redistributivas, por gerarem distorções sobre a eficiência econômica dos mercados (ou vulgo: insatisfação de alguns agentes), assim até a possibilidade de se discutir uma reforma tributária mais progressiva é, por eles, evitada.

Em países como a Noruega, Bélgica e Holanda, onde a concentração de renda está entre uma das menores do mundo e onde os mercados funcionam bem, por conta do grande poder de barganha e da capacidade de mobilização dos diversos segmentos da sociedade, o Welfare State garante um nível de renda mínimo para gerar o bem-estar de sua população, bem como uma maior equidade nos rendimentos. Através de uma arrecadação progressiva de impostos - em que os mais ricos contribuem mais que os mais pobres - o Estado consegue financiar uma ampla rede de proteção social, que inclui educação, saúde transporte, seguridade social e previdência. Nota-se que a decisão de tributar o segmento mais rico da sociedade, para a manutenção do bem-estar do segmento mais pobre não é (só) uma decisão de caráter econômico, mas, sim, político-social. Não foi o mercado que decidiu quanto os trabalhadores, ou quanto os capitalistas deveriam pagar de impostos. Tal decisão adveio de um pacto social, fruto de um acordo político entre os diversos ramos da sociedade sobre a incidência dos ônus e dos benefícios.

Hoje, quando se fala de reforma tributária, foca-se muito no problema do peso dos postos em cascata, da sonegação, do impacto sobre as contas do governo e da competitividade das empresas. Mas, apesar da grande importância de tais questões, pouco(ou nada) se fala da importância da estrutura tributária para a questão distributiva. Ou seja, poucos são os trabalhos acadêmicos que visam identificar os impactos do sistema tributário sobre a estável desigualdade brasileira. Os papers apenas falam na questão da falta de focalização dos gastos sociais e apenas propõe políticas governamentais pontuais (e não políticas redistributivas mais amplas). Notase que, no Brasil, além da arrecadação tributária ser regressiva (por onerar mais os mais pobres), por conta do elevado peso dos impostos indiretos na estrutura tributária, a ineficácia - senão corrupção - dos órgãos responsáveis pela distribuição dos gastos sociais acabam por discriminar os mais pobres.

Por fim, mesmo que os economistas neoclássicos acusem o Estado (ou o processo político que o faz funcionar) pelas distorções geradas sobre a distribuição de renda em favor dos mais abastados, não é possível que uma sociedade atinja este ideal de igualdade de oportunidades sem a intervenção do mesmo. Aqueles que defendem a utopia de se viver em um sistema "natural de liberdade", deveriam saber que o mercado por si só não gera igualdade de oportunidades na ausência de um Estado que corrija as tendências inerentemente concentradoras do sistema capitalista.

* Economista

1 Para maiores informações ver: Gandra, Rodrigo M. "O debate sobre a desigualdade de renda no Brasil: da controvérsia dos anos 70 ao pensamento hegemônico nos anos 90".
Dissertação de Mestrado. Niterói (RJ): UFF, 2002. Contato: rodrigo_gandra@ig.com.br

2 AMADEO, Edward. Dez pontos sobre a situação recente do mercado de trabalho. Notas sobre o Mercado de Trabalho, n°. 5. Brasília: Ministério do Trabalho, 1998.

3 BARROS, Ricardo Paes de; CAMARGO, José Márcio; MENDONÇA, Rosane. A Estrutura do Desemprego no Brasil. Texto para Discussão, n°. 478. Rio de Janeiro: IPEA, 1997, p. 25.

4 BARROS, Ricardo Paes de; RAMOS, Lauro R.; REIS, José Guilherme Almeida. Mobilidade de renda e desigualdade. In: VELLOSO, João Paulo dos Reis (org.). Estratégia Social e
Desenvolvimento. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. p. 219-239.

5 PASTORE, José; e ZYLBERSTAJAM, Hélio. Tendências da mobilidade social. In: VELLOSO, João Paulo dos Reis (org.). Estratégia social e desenvolvimento. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1992, p. 193-218.

6 MADDISON, Angus. Monitoring the World Economy 1820-1992. Paris: Organization for Economics Cooperation and Development (OECD), 1995.