A DÍVIDA ARGENTINA VAI BEM, OBRIGADO

Facebook Twitter WhatsApp

THEOTONIO DOS SANTOS*
thdossantos@terra.com.br
 
A reestruturação da dívida argentina é um ato normal de soberania nacional e de valor republicano. As tentativas de dramatizar tais ações são artifícios dos interesses econômicos associados ao capital financeiro internacional. O povo argentino está totalmente alinhado com seu governo nesta política e isso a torna válida e tranqüila.
Quantas ameaças! Mas desde 1933 se estabeleceram os acordos internacionais que proibiram as invasões militares para cobrar dívidas, como o tinham praticado livremente os Estados Unidos, principalmente contra os países da América Central. Mas tudo é uma questão de correlação de forças. Ninguém poderia invadir todos os países do mundo que entraram em "default" durante a crise iniciada em 1929. Teria que se buscar outros mecanismos.

O mesmo podemos dizer das crises da década de 90, dos quais caso argentino representou uma culminação. Nos casos anteriores do México (1994) e do Brasil (1999), em vez de invadi-los, o tesouro dos Estados Unidos, junto com o FMI e todo o aparato financeiro internacional, lhes abriu enormes linhas de crédito, amplos fundos mais ou menos respaldados por produtos, como no caso do petróleo mexicano, ou por nada, como no caso do Brasil. Em 1998, a Rússia apelou para o default simplesmente unilateral.

Algo parecido havia acontecido na segunda metade dos anos 80, quando quase todos os países devedores suspenderam os envios maciços de pagamentos de juros para os bancos dos países centrais por dívidas que ninguém era capaz de demonstrar sua existência. Fizeram-se as negociações apoiadas no plano Brady e pôde-se retomar o fluxo de capitais no início dos anos 90. Durante estas negociações se aceitou negociar o que se dizia inegociável: o caráter político da dívida, com a aceitação, inclusive, de descontos em seu montante global.

Apesar de todos esses exemplos recentes certos "especialistas" continuam a usar as ameaças de uma "queda do mundo" em cada crise financeira, sempre com o objetivo de exigir a aceitação de pactos de submissão aos interesses dos capitais financeiros internacionais. É verdade que aos argentinos não se abriram os "generosos" créditos que se abriram ao Brasil dois anos antes.

Mas qualquer um terá que admitir que o tesouro norte-americano não poderia continuar exposto a estas imposições extremamente caras para os contribuintes norte-americanos, conseguidas sem apoio parlamentar, por presidentes a serviço dos capitais financeiros. A reação contra tais "generosidades" tinha sido muito forte nos Estados Unidos depois da "ajuda" ao Brasil, e proibiram no Congresso tais liberações de recursos do tesouro. Ao mesmo tempo, o FMI não dispunha de recursos para promover tais facilidades. A Argentina chegou depois e teve que se virar sozinha.

Ao não dispor de qualquer ajuda, o conflito que se estabeleceu foi conseqüência da rápida recuperação do comércio exterior argentino depois da desvalorização do peso. Afastada a loucura da convertibilidade do peso, produziu-se imediatamente um superávit comercial bastante razoável. A briga aconteceu, porque o FMI queria que o governo argentino destinasse todo esse superávit para pagar as "dívidas" com este organismo internacional. Era uma questão de sobrevivência para o governo, principalmente se levar em consideração a gravidade da crise política argentina, não aceitar tais imposições totalmente absurdas.

As coisas seguiram seu ritmo natural. O governo Néstor Kirschner é o produto de um vasto movimento social que exigia uma atitude mais dura com o capital internacional. Não somente exigia a não-submissão ao FMI, como também uma auditoria da dívida para questionar seu montante. Kirschner simplesmente foi fiel a seu programa. Dizem que é má política ser fiel aos programas partidários. A política seria a arte do possível, isto é, enganar os eleitores. Mas o possível é estabelecido por quem?. O fato é que a disposição de defender os interesses do Estado frente às condições absurdas em que se estabeleceram as dívidas (com uma utópica igualdade do peso com o dólar) não é nenhum absurdo nem nenhuma impossibilidade. Vários governos o fizeram na América Latina e em outras regiões do mundo, e não aconteceu nada. Claro que muitos foram preteridos, mas os interesses da maioria foram preservados.

Isso foi o que aconteceu com a emissão de novos títulos em substituição aos títulos respaldados numa moeda conversível que não existe mais. Com o desconto da diferença do valor atual do peso emitiram-se novos títulos que se substituem pelos anteriores. Que isto implica numa "perda" de cerca de 50% ou mais sobre os valores originais não representa algo muito acima dos riscos que se contabiliza em operações financeiras. Esta emissão garante ao governo argentino uma credibilidade que nunca devia ter tido a emissão de títulos em pesos iguais a dólares. A adesão de cerca de 95% dos argentinos indica isso claramente. Também foi muito alta a adesão no exterior, apesar da prepotência de muitos financistas locais.

É verdade que o ajuste atual se restringiu das dívidas particulares. Falta agora ver até que ponto o governo argentino terá a força de estabelecer bases similares para as dívidas com instituições financeiras internacionais, como o FMI. É necessário, entretanto, reconhecer o valor da liderança política argentina atual, independente de orientações ideológicas mais profundas. Ela seguiu seus valores republicanos e de soberania nacional. Mais nada. E para isso conta com o apoio da mais ampla maioria dos cidadãos argentinos.
* Professor titular da UFF, diretor da Cátedra e Rede UNESCO-UNU sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável.www.reggen.org.br