A MACROECONOMIA DE LULA

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4Reinaldo Gonçalves[1]
 
Em artigo recente, Frei Betto afirma: "O Brasil vai bem, o povo brasileiro ainda não. A economia é forte, a política fútil, o direito social frágil. Lula tem ainda pela frente dois anos para atrelar suas prioridades sociais ao ideário político que representa e que deve se impor como senhor, e não servo, dessa macroeconomia que hoje beneficia o país em detrimento da nação" (O Globo, 27 de fevereiro de 2005, p. 7). Frei Betto argumenta que dentro do PT (certamente, a ala governista), acredita que o governo "brilha na macroeconomia: estabilidade monetária, controle da inflação, queda do risco Brasil, crescimento da indústria e das exportações, êxito do agronegócio, aumento das reservas do país e do emprego formal".    

O ponto principal desse artigo é o seguinte: trata-se de erro grosseiro avaliar positivamente a conjuntura econômica e a política econômica atual. E mais: a macroeconomia de Lula incorpora os dois atributos negativos mencionados por Frei Betto, da política fútil e do direito social frágil. Temos, assim, uma macroeconomia fútil e frágil. A macroeconomia de Lula é fútil porque ela é insignificante, inconsistente e, até mesmo, tola. A macroeconomia de Lula é frágil porque ela não permite o ajuste e, menos ainda, o desenvolvimento resistente, robusto e sustentável. 

Uma forma eficaz de demonstrar o ponto acima é contrastar os argumentos apresentados pelo governo com a realidade econômica do país e do mundo. O procedimento, então, é tomar como referência inicial as declarações recentes da maior autoridade econômica do país, o ministro da Fazenda, e confrontá-las com a realidade.

Segundo o ministro da Fazenda "Os pilares da nossa política econômica são um forte equilíbrio fiscal, um compromisso do presidente Lula para que a carga tributária do governo não extrapole os níveis do início do nosso governo, a solidez das contas externas, medidas estruturais para o crédito e a criação de condições institucionais para o crescimento de longo prazo." (O Globo, 26 de fevereiro de 2005, p. 26).

Desequilíbrio fiscal

O argumento a respeito do forte equilíbrio fiscal é falso. Em 2002, o governo central pagou juros nominais correspondente a 3,12% do PIB. Em 2003 e 2004, os pagamentos de juros foram de 6,48% e 4,51, respectivamente (Tabela 1). Portanto, a política monetária e de endividamento provocaram maior desequilíbrio fiscal,  repetindo, maior desequilíbrio – via pagamento de juros. Para corrigir, parcialmente, o enorme desequilíbrio acima, o governo central teve superávits primários (ou seja, cortes de gatos de custeio e de investimento) de 2,37%, 2,49% e 2,98% do PIB, em 2002, 2003 e 2004, respectivamente.[2] Se o enorme déficit causado pelos juros for deduzido do superávit primário, chega-se ao déficit nominal de 0,75% em 2002, 3,99% em 2003 e 1,54% em 2004. Ou seja, em vez do propalado e enganoso equilíbrio fiscal, o governo Lula teve um déficit fiscal médio de 2,8% do PIB nos dois primeiros anos de governo. Detalhe importante: esse déficit foi cerca de 4 vezes maior do que o déficit do último ano do incompetente, medíocre e trágico governo FHC.[3]

E mais: como era de se esperar, esse desequilíbrio de fluxos provocou um aumento do desequilíbrio de estoque: a dívida mobiliária do Tesouro Nacional aumentou de R$ 533 bilhões em 2002 para R$ 679 bilhões em 2003 e R$ 769 bilhões em 2004 (valores no final de ano) (Tabela 2). Em dois anos, o Tesouro Nacional aumentou sua dívida imobiliária em mais de R$ 230 bilhões! Essa dívida, como proporção do PIB, elevou-se de 33,6% em 2002 para 42,5% em 2003, e reduziu-se para 41,6% em 2004.  

Isso representa um enorme desequilíbrio (tanto em termos relativos como em termos absolutos) das finanças públicas federais tendo em vista o serviço dessa juros elevados, conforme veremos mais adiante. O ponto aqui é simples: uma dívida de 40% do PIB a uma taxa de juro de 20% implica pagamento de juros equivalente a uma dívida de 160% do PIB a uma taxa de juro de 5%.

Naturalmente, os defensores do governo argumentarão que a situação é distinta, quando consideramos a dívida líquida total do governo federal. Essa dívida aumentou de R$ 567 bilhões em 2002 para R$ 585 bilhões em 2003 e R$ 610 bilhões em 2004. Como proporção do PIB, a dívida líquida total do governo federal foi de 35,7% em 2002, 36,6% em 2003 e 33,0% em 2004. Dessa forma, ainda que tenha piorado a situação em 2003, comparativamente a 2002, houve uma redução relativa em 2004. Entretanto, quando analisamos os dados em detalhes descobrimos que essa queda relativa deveu-se à redução da dívida externa do governo federal. Isso se explica, em grande medida, pela redução da dívida externa do Tesouro, que é denominada em dólar e que se reduziu com a forte apreciação do real (a taxa de câmbio caiu de R$ 3,53 em dezembro de 2002 para R$ 2,60 em dezembro de 2004). Ou seja, a apreciação cambial explica a queda relativa da dívida líquida total do governo federal em 2004. Resta, aqui, a observação: quando a conjuntura internacional se tornar menos favorável e houver forte pressão sobre o Real, a dívida interna volta a crescer exponencialmente como ocorreu no passado recente.

Mais uma vez, os defensores do governo podem contra-argumentar que a participação dos títulos do Tesouro Nacional indexados à taxa de câmbio caiu significativamente durante o governo Lula (de 22,4% em 2002 para 5,2% em 2004). Entretanto, isso ocorreu no contexto de excesso de oferta de divisas. Na situação de pressão de demanda por divisas, é quase certo que o Banco Central do governo Lula se comporte da mesma forma que o do governo FHC, ou seja, faça emissões extraordinárias de títulos públicos com correção cambial para amortecer os ataques especulativos e para proteger bancos e grandes empresas que estão endividados em dólares.

Ainda no que se refere à questão fiscal, vale destacar o tema da carga tributária. O ministro da Fazenda argumenta que "nós nos comprometemos a não aumentar a carga tributária em relação ao nosso ponto de partida que foi 2002." O problema central é que a carga tributária brasileira tem apresentada uma tendência de crescimento desde meados da década passada. A carga tributária líquida do governo federal, por exemplo, aumentou de 9,82% em 1995 para 13,98% em 2002 (Tabela 3). Em 2003 essa carga foi de 13,55%. Ocorre, que a carga tributária de 2002 foi maior de toda a história econômica do país desde meados do século XIX.[4] O problema é que, como afirma o próprio ministro da Fazenda, "a carga em 2004 deverá ser maior". A ânsia arrecadadora do governo Lula tem se revelado, por exemplo, no aumento de contribuições (Cofins sobre produtos importados, MP 232 sobre a CSLL, etc). É provável que terminemos o governo Lula com a mais elevada carga tributária da história do Brasil.

Independentemente da crença na retórica governamental, o fato relevante é que a discussão da carga tributária envolve não somente a questão do seu tamanho, mas principalmente, a sua distribuição. Conforme ficou evidente na reforma tributária de 2003, a questão relevante para o governo Lula é a da arrecadação e não a distributiva. Nessa reforma, garantiu-se a CPMF e a DRU (Desvinculação de Receitas da União) em troca do abandono de medidas orientadas para o aumento da progressividade tributária (imposto sobre grandes fortunas, imposto sobre heranças, imposto territorial rural, etc). Dessa forma, o governo Lula mantém a regressividade da estrutura tributária brasileira. A MP 232, focada nos profissionais autônomos e nas pequenas empresas, é um exemplo nessa direção. O fato é que o governo Lula não fez nada para mudar as características básicas da tributação no Brasil: o trabalho é mais onerado do que o capital; os impostos indiretos têm maior peso do que os diretos; e, o sistema tributário agrava a concentração de renda e riqueza.

Fazendo o gancho da questão fiscal com a questão distributiva, devemos mencionar que o pagamento de juro foi superior a R$ 140 bilhões em 2003 e R$ 120 bilhões em 2004. Para o leitor ter uma idéia da ordem de magnitude, esses valores correspondem a cerca de 12 vezes os gastos de investimento do governo federal. O resultado é que com esses valores, o orçamento federal torna-se rígido e, portanto, há pequena margem de aumento das despesas de custeio e investimento. Assim, a estrutura de gastos públicos fica comprimida devido ao pagamento de juros estratosféricos. Mais uma vez, constata-se uma clara situação de desequilíbrio fiscal.
 
Inflação, juro e crédito

A pressão inflacionária que ocorreu no final de 2002 e início de 2003 foi controlada (Tabela 4). Conforme afirma o ministro da Fazenda "a política monetária tem tido uma evolução positiva no controle da inflação". Naturalmente, política monetária restritiva encarece o crédito e reduz os estímulos ao consumo. Por outro lado, a política de juros altos inibe os investimentos e, portanto, gera pressão inflacionária via redução da expansão da capacidade produtiva. Juros elevados também aumentam os custos financeiros e, como, resultado, pressionam as estruturas de custos das empresas e os preços no mercado.  

Naturalmente, os juros altos afetam negativamente os gastos. Se essa medida for acompanhada de uma política fiscal restritiva (carga tributária elevada, contração de gastos públicos de custeio e investimento), a demanda agregada fica ainda mais comprimida. As políticas macroeconômicas restritivas têm o efeito de controlar a inflação via redução dos gastos na economia.  

Os governistas têm, naturalmente, o direito de discordar. Eles podem dizer: se acima foi mostrado um forte e claro desequilíbrio fiscal é porque a política fiscal é expansiva e não restritiva. Essa crítica é mais um erro grave de análise econômica que tem sido difundido no Brasil desde o governo FHC. Não é difícil entender porque a política fiscal é restritiva se tomarmos como base a análise keynesiana a respeito das variações no salário nominal. Estendendo essa análise, partimos dos seguintes fatos: aumento da carga tributária;  estrutura tributária regressiva; redução da relação salário/lucro; e redução da relação salário/juro. Esses fatos implicam transferência de renda de trabalhadores e capitalistas para rentistas. Há, ainda, a redução da eficiência marginal do capital (ou seja, a expectativa de lucro) e a redução da propensão média a consumir. Com isso, ao transferir renda de trabalhadores e capitalistas que gastam para rentistas que compram, principalmente, ativos financeiros, há redução na propensão média de absorção interna (gastos de consumo, gastos públicos de custeio e investimento, e investimento privado). Introduz-se, então, um mecanismo de trava na economia via transferência de renda e redução estrutural de gastos, apesar do megadéficit fiscal. O que faz a diferença é a fonte desse déficit. Se houvesse um déficit devido, por exemplo, ao aumento dos benefícios da previdência, dos gastos de custeio ou dos investimentos produtivos do governo, teríamos, sim, uma política fiscal expansionista. Desequilíbrio fiscal provocado por pagamento de juros, em país com forte concentração de riqueza, é política macroeconômica restritiva.

Voltando ao tema da inflação, durante os dois primeiros anos do governo Lula, a inflação foi tratada como se fosse um problema de demanda, ou seja, excesso de gastos. Isso, naturalmente, não tem sentido porque o consumo das famílias caiu 1,5% em 2003 e cresceu 4,3% em 2004, ou seja, média anual 1,4%  na prática, um crescimento per capita nulo. O crescimento do consumo do governo é ainda pior (média de 1,0%; crescimento per capita negativo). O crescimento do PIB foi de 0,5% em 2003 e 5,2% em 2004 – média anual de 2,85%. Essa taxa é a metade da taxa média de crescimento econômico do país durante o século XX.

A inflação no Brasil nos últimos dois anos tem sido determinada, em grande medida, pelos seguintes fatores: mecanismo de correção de tarifas públicas, gargalos existentes no aparelho produtivo e abuso do poder econômico. A política do Banco Central, via uma simples regra de política monetária (aumento das expectativas de inflação implica elevação da taxa de juro), opera, portanto, sobre o sintoma, e não elimina as causas do processo inflacionário. O resultado do foco da taxa de juro no combate à inflação é o fraco desempenho da economia em termos de renda, emprego, acumulação de capital e desequilíbrio fiscal.

Adicionalmente, a política de juros altos de Lula envolve inconsistência macroeconômica. Se o objetivo do governo é o equilíbrio fiscal, a política de aplicar os maiores juros do mundo é contraditória com a política fiscal. O fato é que a política de juro alto anula o esforço de compressão fiscal do governo. Assim, mesmo um enorme superávit primário é incapaz de reduzir a dívida pública interna.  

Os defensores do governo e os representantes dos rentistas podem contra-argumentar que, dada a política de juros altos, são necessários cortes ainda maiores nos gastos do governo. E, é exatamente isso que o governo Lula vem fazendo desde o início do seu governo. Em fevereiro de 2005 o ministro da Fazenda anunciou cortes superiores a R$ 15 bilhões. O ministro do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, afirmou categoricamente que "os cortes são brutais. A sua magnitude vai fazer com que nenhum dos programas do ministério seja preservado".[5] Outra pergunta que persiste é a seguinte: se, conforme o ministro afirma, a questão fiscal está equacionada, por que é necessário um corte brutal dos gastos? 

O problema da argumentação favorável a cortes nos gastos públicos é que ela parte da defesa dos interesses de grupos e classes sociais específicas (em particular, os rentistas). Assim, a política de juros altos é tomada como um parâmetro de política de controle da inflação. Isso é, claramente, um erro técnico. Em primeiro lugar, há um erro de diagnóstico. A inflação brasileira não tem sido determinada pela demanda e, sim pela oferta. Não é contraindo gastos que se resolve o problema da inflação. Manter a inflação em níveis baixos pela via da contração recorrente de gastos públicos e privados é a receita para o subdesenvolvimento permanente.  

Em segundo lugar, mesmo que se decidisse controlar o nível de gastos da economia, há outros instrumentos de política econômica (inclusive, de política monetária) que podem ser acionados. Esse argumento ficará mais claro na última seção onde são apresentadas propostas alternativas. Não é por outra razão que em 2003 o PIB brasileiro cresceu 0,5% enquanto o PIB do conjunto dos países em desenvolvimento cresceu 6,1%. Para 2004 as previsões são de aumento do PIB dos países em desenvolvimento de 6,6%, tendo o PIB do Brasil crescido 5,2%.[6] O que esses números revelam é que a participação do Brasil na renda total dos países em desenvolvimento caiu de 6,16% em 2002 para 5,76% em 2004.[7] Dessa forma, Lula repete mais uma vez o desempenho de FHC. Ou seja, durante os dois anos do governo Lula o Brasil ficou ainda mais subdesenvolvido. 

Associada à questão monetária temos a questão creditícia. O governo tem chamado atenção para a expansão do crédito seletivo, via microcrédito e desconto em folha. Aparentemente, o objetivo do governo Lula parece ser a redução das taxas de juros absurdas cobradas pelas financeiras que afetam, sobretudo, os grupos sociais de renda mais baixa. Essa política, sem dúvida alguma, tem mérito. Entretanto, devemos mencionar três aspectos relevantes. O primeiro é que não houve qualquer incremento significativo das operações de crédito do sistema financeiro nacional, tanto o público quanto o privado. Como proporção do PIB, essas operações têm girado em torno de 24% em 2002-04.[8] O segundo aspecto é que mesmo no crédito seletivo o que se verifica é a existência de altas taxas de juros que oneram o orçamento dos pobres. Nesse contexto, vale destacar que as instituições financeiras públicas têm tido taxas de lucros elevadíssimas.   E, não podemos ver como algo positivo a política que estimula as populações mais pobres a se endividarem (a propaganda governamental é avassaladora) a taxas de juros escorchantes num quadro de queda de rendimento real dos trabalhadores e fraco desempenho do mercado de trabalho.
 

Setor externo

Segundo o ministro da Fazenda, "o Brasil fez uma reversão completa de suas contas externas". Semanalmente o governo anuncia crescimento das exportações e saldos comerciais favoráveis. De fato, os números são significativos. As exportações cresceram de US$ 60 bilhões em 2002 para US$ 73 bilhões em 2003 e US$ 96 bilhões em 2004. O saldo comercial, por seu turno, aumentou de US$ 13,1 bilhões em 2002 para US$ 24,8 bilhões em 2003 e US$ 33,7 bilhões em 2004. No conjunto das transações correntes, os dados também mostram uma melhora: déficit de US$ 7,6 bilhões em 2002 e superávits de US$ 4,2 bilhões em 2003 e US$ 11,7 bilhões em 2004.

Essa melhora conjuntural das contas externas do Brasil deve-se à interação de um conjunto de fatores: fraco desempenho da economia doméstica (absorção interna); extraordinário crescimento do comércio internacional; elevação dos preços das commodities; e, condições relativamente estáveis de liquidez internacional.

A ausência da pressão de demanda interna leva as empresas a orientar a produção para o mercado externo. Conforme apresentado mais adiante, o consumo final das famílias tem crescido em média cerca de 2,0% a.a. Tem havido, então, uma tendência de aumento da propensão a exportar da economia brasileira. Para ilustrar, a relação entre a exportação de bens serviços e o PIB aumentou continuamente de 10% em 1999 para 18% em 2004.[9]

O comércio internacional teve um crescimento extraordinário em 2003-04. Segundo os dados das Nações Unidas, o crescimento do valor das exportações mundiais foi de 16,3% em 2003 e 18,5% em 2004.[10] No entanto, as previsões para 2005 indicam um desaceleração do comércio internacional. A estimativa das Nações Unidas é um crescimento do valor das exportações mundiais de 10,3% em 2005. [11]

As exportações brasileiras cresceram 21,1% em 2003 e 32,0% em 2004. Esses números mostram que o Brasil aumentou sua competitividade internacional. Não obstante, o que se verifica é que esse aumento de competitividade ocorreu, em grande medida, em "setores de reduzido crescimento no comércio mundial e de baixo conteúdo tecnológico".[12]  

A reprimarização das exportações brasileiras se acentuou no governo Lula.[13] Em 2003, o valor das exportações totais cresceu 21,1%, enquanto o das exportações de produtos básicos cresceu 24,9%. As taxas correspondentes para 2004 foram 32,0% e 34,7%, respectivamente.[14] Essa reprimarização aumenta a vulnerabilidade externa da economia brasileira na esfera comercial, conforme os ensinamentos da Cepal desde o final dos anos 40.   

O aumento dos preços das commodities agrícolas foi determinante importante do crescimento das exportações brasileiras. Algumas das commodities exportadas pelo Brasil tiveram uma elevação significativa de preços como, por exemplo, o farelo de soja, cujo preço da tonelada passou de US$ 167 em dezembro de 2002 para US$ 318 em abril de 2004.[15] O conjunto das commodities teve crescimento de 24,3% dos preços em dólares no mercado internacional em 2004.[16] Entretanto, as previsões a respeito dos preços das commodities no mercado mundial não são favoráveis para o futuro próximo. As Nações Unidas, por exemplo, projetam uma queda no preço médio das commodities (exceto petróleo) de 3,9% em 2005.[17] 

As condições de liquidez internacional se mantiveram estáveis nos últimos dois anos. O ingresso líquido de capitais privados nos países em desenvolvimento aumentou de US$ 61 bilhões em 2002 para US$ 120 bilhões em 2004.[18] Como resultado desse aumento de liquidez internacional, houve uma redução generalizada dos prêmios de risco dos mercados emergentes. O crescimento extraordinário do comércio internacional e as condições favoráveis de liquidez internacional permitiram, então, que os países em desenvolvimento experimentassem uma significativa elevação do nível de reservas internacionais. Para ilustrar, no período 1996-2002 o aumento médio anual das reservas internacionais dos países em desenvolvimento foi da ordem de US$ 110 bilhões.[19] Em 2003, esse aumento foi de US$ 367 bilhões. Esse número é, provavelmente, um recorde histórico.

Em 2004 já houve uma redução do ingresso líquido de capitais privados nos países em desenvolvimento para US$ 82 bilhões. As estimativas do FMI para 2005 mostram também uma queda (ingresso estimado de US$ 48 bilhões).[20]

Essas observações indicam, então, que a conjuntura internacional foi extraordinariamente favorável em 2003-04. No entanto, as previsões disponíveis apontam, tanto no sistema mundial de comércio como no sistema financeiro internacional, uma tendência de desaceleração. Ou seja, o Brasil deverá enfrentar maiores obstáculos na sua inserção econômica internacional.

Os defensores governo provavelmente não discordam dos argumentos acima. No entanto, eles acrescentam que o governo Lula tem feito uma blindagem da economia brasileira via redução da vulnerabilidade econômica externa do país. Para isso, eles apresentam alguns indicadores como, por exemplo, a relação pagamento de juros/exportações, que foi reduzida de 23,6% em 2002 para 15,9% em setembro de 2004 (Tabela 5). Há, ainda, a razão dívida externa total/exportações, que caiu de 3,5 em 2002 para 2,2 em setembro de 2004. E mais, eles podem destacar que a dívida externa total diminuiu de US$ 211 bilhões em 2002 para US$ 202 bilhões em setembro de 2002. Todos esses indicadores mostram, claramente, uma melhora da situação brasileira quando se toma como denominador dos coeficientes o valor das exportações, que deu um "saldo quântico" nos últimos dois anos (crescimento acumulado superior a 50%). Essa melhora expressa, na realidade, uma tendência que já vem se manifestando desde a crise cambial de 1999.

Não obstante esses indicadores, há motivos sérios de preocupação quanto a evolução das contas externas brasileiras. No que se refere ao processo de endividamento, vale mencionar dois aspectos. O primeiro é o aumento da dívida externa pública. Essa dívida cresceu de US$ 125 bilhões em 2002 para US$ 136 bilhões em 2003 e retrocedeu para US$ 131 bilhões em setembro de 2004. Assim, durante os dois primeiros anos do governo Lula houve um aumento da dívida externa do setor público. Esse fato é particularmente grave na medida em que nesses dois anos o país acumulou um saldo comercial de US$ 59 bilhões e a taxa de câmbio teve queda nominal de mais de 30%. Esse aumento da dívida externa do setor público mostra, de fato, a ausência de uma estratégia ativa de redução da vulnerabilidade externa do país.

Esse argumento é apoiado pela evolução da dívida externa do setor privado, que foi reduzida de US$ 86 bilhões em 2002 para US$ 80 bilhões em 2003 e US$ 72 bilhões em setembro de 2004. Assim, enquanto o setor privado está se aproveitando da queda da taxa de câmbio para reduzir seu endividamento externo, o governo Lula está fazendo exatamente o contrário. O resultado é a repetição de um fenômeno já anteriormente observado na história brasileira: a socialização da dívida externa. A evidência é conclusiva. A participação do setor público na dívida externa aumentou de 59,4% em 2002 para 64,6% em setembro de 2004.

Mais uma vez, os defensores do governo podem contra-argumentar e chamar atenção para o aumento das reservas internacionais nos últimos dois anos. De fato, as reservas líquidas ajustadas (descontando os recursos do FMI) elevaram-se de US$ 16 bilhões em 2002 para US$ 21 bilhões em 2003 e US$ 28 bilhões em 2004 (Tabela 6). Em janeiro de 2005 houve novo incremento e as reservas atingiram US$ 30 bilhões. Esses números merecem, entretanto, algumas qualificações. Em primeiro lugar, esse acúmulo de reservas se concentrou no final e no início dos anos de 2003 e 2004. Isso sugere que o governo não tem uma política firme de acumulação de reservas internacionais. Aparentemente, esse aumento de reservas é passivo e responde às pressões dos exportadores para que as compras governamentais de dólares segurem a queda da taxa de câmbio. 

O segundo aspecto a destacar é que o país acumulou um saldo comercial de US$ 59 bilhões em 2003-04, ao mesmo tempo em que as reservas internacionais aumentaram cerca de US$ 11 bilhões e a dívida externa total (inclusive, os empréstimos intercompanhias) reduziu-se em cerca de US$ 5 bilhões (de US$ 227,7 bilhões em dezembro de 2002 para 222,2 bilhões em novembro de 2004).[21]Assim, considerando o aumento de reservas e a redução da dívida, o passivo externo líquido diminuiu US$ 16,5 bilhões nos dois primeiros anos do governo Lula, ou seja, menos de 30% do saldo da balança comercial de bens. E, adicionalmente, nesse mesmo período, houve forte queda da taxa de câmbio nominal (mais de 30%) e condições favoráveis de liquidez internacional. Esses fatos indicam, mais uma vez, a ausência de uma estratégia ativa de redução da vulnerabilidade externa do setor público e do país. 

Para reforçar esse argumento, podemos acrescentar que no período 2003-04 o acúmulo total de reservas dos países em desenvolvimento foi de US$ 717 bilhões, ou seja, o Brasil respondeu por somente 1,5% desse acúmulo de reservas.[22] Esse número é expressivo da ausência de estratégia quando se considera que, no conjunto de 146 países em desenvolvimento, o Brasil responde por 6,2% do PIB, 3,4% das exportações de bens e serviços e 3,3% da população.[23]

Se considerarmos a importância relativa da economia brasileira, informada pelos números acima, e, principalmente, a extraordinária vulnerabilidade externa do país, era de se esperar que uma estratégia ativa de blindagem envolvesse uma aumento de reservas bem acima daquele observado nos últimos dois anos. Nesse sentido, o país poderia ter acumulado 2 ou 3 vezes mais reservas externas do que efetivamente acumulou com a estratégia passiva do governo Lula. 

Os defensores do governo Lula podem levantar o seguinte ponto: a redução do passivo externo líquido (US$ 16,5 bilhões) foi equivalente à soma do saldo de transações correntes em 2003 (US$ 4,2 bilhões) e em 2004 (US$ 11,7 bilhões). Portanto não haveria maior margem de acumulação de reservas e de redução do estoque da dívida. No entanto, juntamente com as transações correntes devemos levar em conta dos fluxos de capitais internacionais. É nesse ponto que se revela mais uma fragilidade da política econômica do governo Lula. Mais especificamente, não houve qualquer medida de controle de capitais internacionais. Lula tem mantido a liberalização cambial e financeira que está na origem da enorme vulnerabilidade externa do país. Na realidade, a evidência mais recente indica que Lula tem avançado nessa liberalização, que é um dos pontos mais fracos da economia brasileira.[24]  

O principal resultado tem sido a piora da situação da conta financeira do balanço de pagamentos. Ou seja, 2004 foi pior do que 2003, e os dois anos de Lula foram piores do que o do período FHC. Vejamos os números. A conta financeira teve um saldo positivo de US$ 7,6 bilhões em 2002. Em 2003 esse saldo caiu para US$ 4,6 bilhões e, em 2004, houve um déficit de US$ 8 bilhões. Essa conta, naturalmente, sofre grandes oscilações pois compreende não somente fluxos de capitais de longo prazo como também de curto prazo, com destaque para os fluxos especulativos. Entretanto, dois fatos chamam atenção no período 2003-04. O primeiro é o aumento da amortização da dívida externa. Esse fato, conforme vimos acima, resulta do pagamento da dívida externa do setor privado e, portanto, implica redução do passivo externo do país. Ou seja, temos aqui um aspecto favorável e, ao mesmo tempo, uma sinalização de desconfiança quanto a trajetória futura das contas externas do país.  

O segundo fato marcante da conta financeira do balanço de pagamentos reflete a falta de estratégia e controle. Trata-se do aumento dos fluxos de saída de investimento brasileiro direto. Esse fluxo foi de US$ 2,5 bilhões em 2002, caiu para US$ 250 milhões em 2003 e saltou para US$ 9,5 bilhões em 2004.[25] Não há como negar que o Brasil tem um enorme passivo externo, baixas reservas internacionais, elevada vulnerabilidade externa e que o ajuste externo tem significado um grande sacrifício para o seu povo. E, nesse país, o governo Lula permite que os residentes invistam no exterior o equivalente a praticamente dois terços do saldo de transações correntes.[26] 

Naturalmente, os defensores do governo argumentam que o investimento de empresas brasileiras no exterior terá conseqüências positivas em termos de remessa de lucros e dividendos e de abertura de novos canais de exportação. Essa leitura otimista parte da premissa que a empresa brasileira que investe no exterior tem estratégias de inovação tecnológica e de acumulação de capital que exigem operações em escala global, como se elas fossem verdadeiras empresas transnacionais.   A realidade, entretanto, indica que boa parte do investimento externo direto dos grandes grupos econômicos brasileiros (principalmente, os de origem familiar) reflete estratégias de diversificação de risco e, muito freqüentemente, de fuga de capitais.[27] 

Voltando ao tema das reservas, os governistas podem contra-argumentar que o acúmulo de reservas teria dois efeitos negativos. O primeiro seria impedir a queda da taxa de câmbio e, portanto, se eliminaria o papel da apreciação cambial no combate à inflação. Se não houvesse a apreciação cambial a inflação teria sido mais elevada do que a observada nesses dois últimos anos. O segundo efeito negativo seria aumentar a dívida pública. 

Esses dois argumentos merecem qualificações. O primeiro argumento reconhece explicitamente que a taxa de câmbio tem sido usada como um instrumento de combate à inflação. Nesse caso, o governo Lula repete a experiência do início do Plano Real em 1994, que se caracterizou por uma forte apreciação cambial. O problema é que mudanças na conjuntura internacional podem provocar alterações abruptas na taxa de câmbio e, como resultado, colocar o país, mais uma vez, numa situação de grave crise cambial, forte pressão inflacionária, explosão da taxa de juro e queda abrupta do nível de atividades. No contexto dessa crise, a pressão inflacionária retorna via aumento dos custos. Isso ocorreu em 1999 e 2002. Nesse sentido, da mesma forma que FHC, Lula está trocando inflação mais alta no futuro por inflação mais baixa no presente. O resultado é somente um: trajetória de instabilidade e crise, o stop and go da economia brasileira.

No que se refere ao efeito do acúmulo de reservas internacionais sobre a dívida pública, devemos chamar atenção para o fato de que esse argumento despreza dois resultados advindos da mudança na política macroeconômica. O primeiro é o acúmulo de reservas deveria ser acompanhado por controles de capitais e redução significativa da taxa de juros e, portanto, haveria redução do déficit público. O segundo é que a redução da taxa de juros e a desvalorização cambial teriam um efeito expansionista sobre a economia. O maior nível de renda é fonte de crescimento da receita fiscal, sem necessidade de aumento da carga tributária. Esse aumento de receita fiscal seria fonte de recursos para um uso definido, a saber, a compra de divisas internacionais para o acúmulo de reservas.    

Nesse ponto, vale mencionar como indicador da frágil situação das contas externas a razão entre as reservas internacionais e as importações. Esse é um tradicional indicador de análise da robustez da situação das contas externas de qualquer país. No início do governo FHC esse indicador era da ordem de 15, ou seja, as reservas internacionais cobriam 15 meses de importações de bens. Nos anos de grave crise cambial (1999 e 2002) esse indicador ficou entre 9 e 10 (Tabela 6). Em 2003 e até meados de 2004, esse indicador foi de aproximadamente 12  refletindo o fraco desempenho das importações e o pequeno aumento das reservas internacionais. Com a expansão da economia a partir de meados de 2004 e, conseqüentemente, o aumento das importações, esse indicador caiu para 10. Ou seja, em janeiro 2005 estamos com um indicador de vulnerabilidade externa no mesmo nível dos anos de grave crise cambial.

Em síntese, a conjuntura internacional extraordinariamente favorável beneficiou o Brasil, principalmente, via aumento da demanda pelas exportações brasileiras e da oferta de liquidez internacional. Por outro lado, a condução da política cambial, a elevação da dívida externa do setor público e a ausência de uma estratégia ativa de formação de reservas indicam a fragilidade da macroeconomia de Lula. Contrariamente ao que afirmou o ministro da Fazenda, não houve uma reversão completa das contas externas do país. Essa fragilidade ficará evidente quando houver uma reversão das atuais condições favoráveis do sistema mundial de comércio e do sistema financeiro internacional. Os governistas podem, no entanto, nos oferecer um consolo: as previsões disponíveis não indicam qualquer mudança abrupta, mas um retorno a uma situação menos favorável do que aquela observada nos últimos dois anos.
 

Produção, renda e emprego

A taxa de crescimento econômico (PIB) de longo prazo do Brasil foi de 5,9% no século passado.[28] O desempenho medíocre do governo FHC caracterizou-se, entre outros fatores, pelo crescimento médio anual do PIB de 2,3%. A política econômica de Lula não se difere significativamente daquela implementada por FHC. O resultado não poderia ser diferente: o crescimento médio anual do PIB nos dois primeiros anos de governo Lula foi de 2,9% (Tabela 7). Para 2005, a maior parte dos analistas está prevendo uma taxa entre 3,5% e 4,0%.

Na ótica da despesa, a análise dos fatores de expansão da demanda agregada mostra claramente a predominância da demanda externa, ou seja, das exportações de bens e serviços. Esse fato é válido tanto para o governo FHC quanto para o governo Lula. Entretanto, é no governo Lula que as exportações tornam-se muito mais relevantes como fator de expansão da renda. Conforme já vimos, isso decorre da conjuntura internacional extraordinariamente favorável no período 2003-04. O resultado é que no governo Lula as exportações crescem a uma taxa média que é duas vezes superior à taxa média do crescimento das exportações no governo FHC. Na medida em que não houve um salto "quântico" em termos de inovação tecnológica e acumulação de capital, é correto afirmar que essa expansão das exportações brasileiras tem sido causada, principalmente, pelas condições de demanda.

De fato, os investimentos mostram um desempenho fraco nos últimos 10 anos. O crescimento médio anual da formação bruta de capital fixo durante o governo FHC foi de 1,95%, e nos dois primeiros anos do governo Lula foi de 2,54%. Vale a pena ressaltar que em ambos os governos esse crescimento mostra grande volatilidade, pois anos de queda abrupta são acompanhados por anos de elevação do nível de investimentos. Isso reflete, na realidade, a própria trajetória de instabilidade e crise da economia brasileira nos últimos 10 anos. 

A taxa de investimento nos dois primeiros anos do governo Lula apresentou forte queda, principalmente, em 2003 (Tabela 8). Na realidade, em nenhum momento do período 1995-2002 se observou uma taxa tão baixa quanto aquela de 2003. Em outras palavras, devido à sua política macroeconômica restritiva, o governo Lula consolida a tendência de queda da taxa de investimento da última década. 

A evolução do consumo das famílias mostra que a taxa de crescimento em 2003-04 (2,54%) foi menor do que em 1995-2002. Esse dado é relevante, não somente para mostrar que o consumo das famílias tem tido uma evolução pior no governo Lula, como também para ressaltar a contradição entre a política econômica de Lula e o programa de governo de Lula. Nesse programa (bem como no PPA do governo) está explicitamente definido que a prioridade seria a expansão do mercado interna de consumo de massas. O fato a destacar é que nos dois primeiros anos de houve crescimento per capita nulo do consumo das famílias.  

A situação dos gastos públicos é ainda mais sintomática. Durante o governo neoliberal de FHC os gastos públicos foram comprimidos, pois tiveram um crescimento médio anual de 1,66% e, portanto, inferiores ao crescimento do PIB . No caso de Lula, o corte dos gastos públicos (o megasuperávit primário) tem provocado um cresciemnto médio anual de 0,99%, ou seja, uma queda per capita dos gastos públicos da ordem de 0,5% em cada ano de governo. 

Assim, no governo Lula o papel protagônico das exportações e o fraco desempenho do consumo das famílias mostram o caráter internacionalizante da política econômica, enquanto a queda dos gastos públicos mostra o caráter privatista desse governo. A tendência liberalizante do governo Lula está expressa na maior liberalização financeira e cambial já mencionada acima, bem como na maior abertura da economia brasileira, pois os coeficientes de exportação e o de importação se elevaram. Na média, as importações durante os dois primeiros anos de governo Lula cresceram a uma taxa superior a aquela observada no governo FHC. A volatilidade das importações mostra tanto a instabilidade da evolução da renda quanto da taxa de câmbio nos últimos dois anos. Essa instabilidade, de fato, reproduz a trajetória observada no governo FHC.

O resultado pífio dos investimentos, dos gastos públicos e do consumo das famílias está associado ao fraco desempenho do mercado de trabalho. Acompanhando a evolução renda, a taxa de desemprego sobe significativamente até o primeiro trimestre de 2004 e, em seguida, essa taxa diminui. Entretanto, ela ainda se mantém elevada no final de 2004 e início de 2005 (média anual de 11,4% em janeiro de 2005) (Tabela 9). Essa taxa está muito próxima da taxa do último ano do governo FHC (11,7%). Deve-se notar que a taxa de desemprego clara tendência de aumento a partir de 1995 (ver Gráfico). Tendo em vista o crescimento da população economicamente ativa, isso nos leva à conclusão que, atualmente, há mais desempregados do que há dois anos. De fato, para se manter a taxa de desemprego estável é necessário que o PIB cresça a uma taxa média anual de pelo menos 3,5%.[29] Nos dois primeiros anos do governo Lula, o PIB cresceu em média 2,9% e como as expectativas para 2005 são de um crescimento da ordem de 3,5%-4,0%, é provável que até o final do terceiro ano de governo, o número de desempregados existentes no país seja superior ao do último ano do governo FHC. Adicionalmente, com uma taxa média anual de crescimento da ordem de 3,0%, é improvável que Lula crie muito mais do que 5 milhões de emprego ao longo dos seus quatro anos de governo. Ou seja, ele ficará muito aquém da meta de 10 milhões empregos com que se comprometeu na campanha eleitoral. 

O resultado pífio em termos de redução do desemprego esteve associado à queda da renda real do trabalhador. E, nesse item, o governo do Partido dos Trabalhadores tem mostrado resultados altamente negativos e, até mesmo, contraditórias com a linha programática do partido. Nos dois primeiros anos do governo Lula o rendimento médio real do trabalhador brasileiro caiu 5,8% (Tabela 10). A taxa média de variação desse rendimento durante o governo FHC foi de 0,8% se considerarmos o ano de 1995 e de -0,7% se excluirmos esse ano da série. 

Naturalmente, os defensores do governo argumentam que a queda do rendimento do trabalhador deveu-se ao ajuste necessário em 2003 e que em 2004 os indicadores mostram recuperação. Esse fato é incontestável, mas deve-se notar a diferença entre a evolução do PIB e da renda do trabalhador. Em 2003 o PIB per capita caiu 0,9%, enquanto o rendimento médio do trabalhador reduziu-se em 11,8%. Em 2004 o crescimento do PIB per capita foi de 3,8% e a renda média real do trabalhador aumentou 0,24%. 

Essa diferença entre a evolução da renda total e da renda do trabalhador tem uma implicação evidente: piora da concentração de riqueza e renda. Em 2002 a participação dos salários na renda (o nível mais baixo do governo FHC) foi de 26,1%, e em 2003 essa participação caiu para 25,9% (Tabela 11). Mais uma vez, o desempenho de Lula reproduz o de FHC. A tendência de piora na distribuição da renda, a favor do capital e em detrimento do trabalho, foi verificada ao longo do governo FHC. Essa tendência é mantida durante o governo Lula, como uma diferença marcante: trata-se do governo do Partido dos Trabalhadores.

Conclusão

Não devemos perder tempo criticando os representantes dos bancos (banqueiros, analistas de mercado de capitais, jornalistas associados, etc) e do agronegócio (leia-se, latifundiários e empresas transnacionais) que têm defendido a política econômica de Lula. Afinal de contas, essa defesa de Lula baseia-se, exclusivamente, nos interesses desses grupos sociais e econômicos  interesses esses que estão sendo plenamente atendidos por Lula. Para ilustrar, os bancos têm tidos lucros recordes que ultrapassam, em média, 20% do patrimônio.[30]O mesmo ocorre com os exportadores do agronegócio que exploram latifúndios. Em 2004, o lucro líquido das maiores empresas brasileiras cresceu 45,8%, enquanto o rendimento médio real do trabalhador cresceu 0,24%.[31] 

Enquanto isso, o tecido social se esgarça ainda mais, as instituições se degradam, os trabalhadores perdem e os banqueiros gargalham. E, a macroeconomia revela sua verdadeira cara, fútil e frágil, quando as expectativas de crescimento econômico do país são rebaixadas em decorrência das expectativas de desaceleração da economia mundial. 

Naturalmente, causa surpresa ao leitor que homens como Frei Betto façam a clivagem entre país e povo, pois o país (nação) é composto de território, Estado e, antes de tudo, povo. É um nonsense afirmar que um país vai bem, enquanto seu povo vai mal. Afinal de contas, a avaliação de que o país vai bem ou vai mal deve ser feita segundo os interesses de grupos e classes sociais específicos. É a famosa e secular pergunta: Vai bem para quem, cara-pálida?

Os números acima nos levam a uma conclusão diametralmente oposta a de Frei Betto: as empresas e os bancos (e, portanto, os capitalistas) vão muito bem, enquanto os trabalhadores vão muito mal. O que não podemos esquecer é que povo brasileiro é composto de 0,5% de capitalistas, 3,5% de pequenos empregadores e 96,0% de trabalhadores  boa parte está desempregada ou subempregada (Tabela 12). Assim, o correto é afirmar: o país vai muito mal porque a grande, acachapante, maioria vai mal. E mais, o governo do Partido dos Trabalhadores está fazendo pouco ou quase nada por essa maioria. 

Muito provavelmente, Frei Betto tem a intenção de defender o governo Lula quando se manifesta sobre a macroeconomia e comete erro grosseiro de avaliação. E esse tipo de defesa, que revela contradições e nonsense, tem sido muito comum por parte, inclusive, de representantes da sociedade civil. Várias são as razões: cumplicidade, cooptação, compaixão, pusilanimidade ou, simplesmente, erro grosseiro de avaliação.  

Nesse texto, compartilhamos as mesmas virtudes teologais (fé, esperança e caridade) implícitas no texto de Frei Betto e nas avaliações que muitos representantes da sociedade civil fazem a respeito da política econômica do governo Lula. Portanto, supomos que os defensores de Lula, o grupo dos "homens e mulheres de bem", estão somente cometendo um erro grosseiro. No mundo cristão, essas virtudes são estruturantes. 

Entretanto, a realidade brasileira atual é a seguinte: as filas de desempregados se alongam, a renda do trabalhador cai, a violência explode, a saúde e educação se degradam e a proteção social se enfraquece, a esperança definha, enquanto os exportadores-latifundiários do agronegócio e os banqueiros enriquecem ainda mais. E, o governo Lula nada fez de significativo para alterar essa situação, pois, conforme assinala Frei Betto, a política é fútil e o direito social é frágil. E, conforme, procuramos demonstrar nesse artigo, a macroeconomia de Lula é fútil e frágil.

Enfim, nada mudou. É por essa razão que, em novembro de 2003, mais de três centenas de economistas publicaram manifesto com críticas severas à política econômica de Lula e, ao mesmo tempo, apresentaram propostas alternativas (Quadro). O fato é que a macroeconomia f'útil e frágil de Lula decorre de uma opção política. Os grupos dirigentes podem se sentir mais confortáveis no poder, mas perde a grande maioria do povo brasileiro.
 

[1] Professor titular de Economia da UFRJ (rgoncalves@alternex.com.br). Texto preparado para a Rede Brasil, com base em dados disponíveis até 5 de março de 2005, é de exclusiva responsabilidade do autor.
 
[2] O famigerado superávit de 4,25% do PIB, mencionado no acordo do FMI, refere-se ao conjunto das contas da União, dos governos estaduais e municipais, e das empresas estatais.
 
[3] A respeito do desempenho medíocre e da herança trágica do governo FHC, ver Reinaldo Gonçalves, A Herança e a Ruptura, Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2003. Ver, também, Ricardo Carneiro, Desenvolvimento e Crise. A economia brasileira no último quarto do século XX, São Paulo, Editora Unesp, 2002; e, Luiz Filgueiras, História do Plano Real, São Paulo, Boitempo Editorial, 2ª. edição, 2003.
 
[4] A série histórica inicia-se em 1851; ver Reinaldo Gonçalves e Valter Pomar, A Armadilha da Dívida, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2002.
 
[5] "O corte foi muito pesado", segundo Miguel Rosseto, ministro do Desenvolvimento Agrário, O Globo, 1 de março de 2005, p. 3.
 
[6] FMI, World Economic Outlook, Washington, International Monetary Fund, setembro de 2004, tabela 1.1, p. 3.
 
[7] Os dados de renda em referem-se ao PNB (conceito paridade do poder de compra) em 2002; ver Banco Mundial, World Development Indicators 2004, Washington, Banco Mundial, tabela 1.1., p. 14-16.
 
[8] Banco Central, Indicadores econômicos, tabela II.24 (www.bacen.gov.br).
 
[9] IBGE, Sistemas de Contas Nacionais, tabela 4 e tabela 8 (www.ibge.gov.br).
 
[10] Nações Unidas, World Economic Situation and Prospects 2005, Nova York, United Nations, 2005, tabela A.7, p. 118.
 
[11] Ibid.
 
[12] IEDI, O Comércio Exterior Brasileiro em 2004, www.iedi.org.br, p. 1.
 
[13] A reprimarização expressa a maior parcela de produtos primários nas exportações. Ver, Reinaldo Gonçalves, O Brasil e o Comércio Internacional. Transformações e Perspectivas, São Paulo, Editora Contexto, 2000, capítulo 5.
 
[14] IEDI, op. cit., p. 9.
 
[15] Banco Central, op. cit., tabela VI.1 (www.bacen.gov.br).
 
[16]FMI, op. cit., tabela 1.16 (Apêndice 1.1), p. 67.
 
[17] Nações Unidas, op. cit., tabela 1.1, p. 3.
 
[18] FMI, op. cit., tabela 1.3, p. 9.
 
[19] Ibid.
 
[20] Ibid.
 
[21] Banco Central, op. cit., tabela XLVII.
 
[22] FMI, op. cit., tabela 1.3, p. 9.
 
[23] Ibid. Apêndice, tabela A, p. 191.
 
[24] O governo Lula tem tomado medidas que aumentam ainda mais liberalização financeira e cambial. Por exemplo, segundo decisão do Conselho Monetário Nacional de 4 de março de 2005, residentes no Brasil não precisam mais utilizar o mecanismo da CC-5, que passa a ser usada somente por não-residentes. A partir dessa medida, os residentes podem enviar diretamente recursos ao exterior por meio de operação bancária de transferência de moeda estrangeira (O Globo, 5 de março de 2005, p. 27).
 
[25] Banco Central, Séries históricas, Balanço de pagamentos (www.bacen.gov.br).
 
[26] O saldo de transações correntes acumulado em 2003-04 foi de US$ 15,8 bilhões, enquanto o investimento brasileiro direto no exterior (líquido) foi de US$ 9,7 bilhões.
 
[27] Tomemos a seguinte notícia recente: "Fiscal do INSS tem negócio milionário nos EUA", O Globo, 3 de março de 2005, p. 8. Segundo a matéria, o auditor fiscal preso "sob suspeito de fraudar a Previdência Social, é sócio de um empreendimento comercial na Flórida".
 
[28] Reinaldo Gonçalves, A Herança e a Ruptura, op. cit., cap. 1.
 
[29] Esse argumento baseia-se numa elasticidade produto-emprego de 2, que é freqüentemente usada por especialistas em mercado de trabalho.
 
[30] O Globo, 5 de março de 2005, p. 28.
 
[31] Ibid.