Em defesa da vida
Antônio Rangel Bandeira*
Este artigo e o próximo foram escritos, a convite do JE, por duas personalidades da sociedade civil que vêm se destacando na defesa de pontos de vista contrários, em relação ao referendo que acontecerá no próximo dia 23 de outubro. A intenção, obviamente, é contribuir com o debate.
O desarmamento é uma iniciativa da sociedade. No Brasil ganhou força porque este é o país em que mais se mata e mais se morre por arma de fogo: 36 mil mortes por ano. O que há de errado conosco? Entre as várias causas, sobressai a da facilidade com que se obtém uma arma e a banalidade com que ela é usada.
Convivem um Brasil moderno, que busca a reforma, e um país arcaico, machista, inocente útil nas mãos de interesses escusos da banda podre da polícia e da indústria bélica. Gente que fatura alto com o comércio legal e ilícito desses produtos, armando a bandidagem. Essa aliança sórdida luta contra a transparência e a informação científica, copia as táticas da Associação Norte-americana de Fuzis, manipulando o medo e jogando com a ignorância sobre o tema. Afirma que estamos "desarmando os homens de bem e deixando os bandidos armados".
Ora, nossa campanha procura convencer o cidadão a se desarmar porque as pesquisas revelam que, nas grandes cidades, arma é instrumento de ataque, não de defesa, e dá apenas ilusão de segurança. O assaltante conta com o "efeito surpresa" e só na fantasia do cinema a vítima leva a melhor.
Se tivermos uma arma para autodefesa, ela estará municiada e acessível. Isto é, pronta para ser roubada pelo assaltante, achada pelo filho ou neto do seu dono, pelo adolescente deprimido com ímpeto suicida, pelo marido enciumado e bêbado. 46% das mulheres brasileiras mortas por arma de fogo foram assassinadas pelo seu parceiro íntimo.
Bons de tiro, maus de história...
O Rio Grande do Sul, com o maior índice de armas registradas, é campeão nacional em suicídio por arma de fogo. Mas persiste o equívoco de que o maior perigo vem da rua.
Em São Paulo, o latrocínio (assalto seguido de morte) representa 5% das mortes. No Rio de Janeiro, menos de 3%. Eles aparecem na mídia, mas a morte entre quatro paredes é silenciosa. Nos Estados Unidos, 85% das vítimas de arma de fogo conheciam seu agressor. O desarmamento civil visa reduzir essas mortes banais, que são a maioria. Não vai resolver sozinho o problema da violência armada, mas é medida essencial.
Outra coisa é "desarmar os bandidos". Para isto votou-se o Estatuto do Desarmamento, aplaudido na ONU, e que prevê marcação de arma e munição, banco de dados e outras medidas que permitam o rastreamento desses produtos e a descoberta das quadrilhas que armam o crime. Os que dizem que devemos "é combater o crime", tudo fizeram para impedir a aprovação dessa lei, em verdadeira cumplicidade com o banditismo. Na verdade, defendendo seus financiadores, a indústria bélica.
Ao invés de atacar, deveriam se somar a nós para pressionar o governo a botar em prática o Estatuto, que aumenta as penas para o tráfico ilegal de armas e proíbe o seu porte. A nova lei dá meios e obrigações para a polícia desarmar o crime. Busca desarmar toda a sociedade, bandidos e pessoas de bem, pois o desarmamento civil também acaba afetando o crime: o preço do revólver 38 aumentou cinco vezes no mercado ilícito; as 450 mil armas já entregues baixaram em 8,2% as mortes por arma de fogo, salvando 3.234 vidas e reduzindo os feridos em 10,5%, no Rio, e em 7%, em SP.
Os gastos na aplicação do Estatuto do Desarmamento são um investimento que salva vidas e prende bandidos, melhor do que gastar com um modelo falido de polícia. É a única reforma na segurança pública que está dando certo e se quer desacreditar esse primeiro passo. Alegam que "só as ditaduras desarmam o povo". Não é verdade. As ditaduras desarmam a oposição para proteger o governo. As democracias promovem o desarmamento civil para aumentar a segurança dos cidadãos. Se são bons de tiro, são maus de história.
A "doutrina Bush", que reprime as "armas más" e glorifica as "armas boas", esconde que 99% das armas são legalmente fabricadas e se controladas não chegariam às mãos de criminosos. No Rio, 33% das armas apreendidas na ilegalidade tinham sido vendidas legalmente para gente de bem. Em 2003, foram roubadas ou desviadas no país 56 mil armas. Isto é, "bandido não compra arma em loja". Quem compra é gente de bem, e os bandidos as tomam, agradecidos.
Popularizar as informações
O direito à "legítima defesa" se baseia na proteção da vida. Quando os números revelam o massacre de mulheres e demonstram que quem reage a assalto armado tem 180 vezes mais chances de ser morto do que quem não reage, o uso de arma para defesa é um tiro pela culatra. O pai de família que se arma está aumentando o risco e não protegendo a família.
A Constituição atribui ao Estado a proteção dos cidadãos. Essa é a segurança republicana, que protege a todos e não apenas a quem pode pagar por segurança. Se a polícia é falha, temos que reformá-la e não armar de forma insensata a população. Policial a favor de civil armado revela sua própria incompetência. No Brasil, 90% das armas estão nas mãos de civis. Se armar fosse a solução, seríamos um país pacífico.
Dizem que "o problema são as armas estrangeiras". Tenta-se ocultar o fato de que 77% das armas apreendidas na ilegalidade são brasileiras e 80% são pistolas e revólveres. É precaríssimo o controle sobre o comércio e transporte dessas armas. Este ano, a Polícia Federal apreendeu 2 milhões de munições que estavam sendo enviadas por um gerente da Rossi para o crime organizado em Pernambuco. Claro que devemos controlar as fronteiras, mas 80% do problema está aqui dentro.
Os que defendem as armas não gostam de estatísticas e só citam casos em que uma arma salvou uma vida. Mas políticas públicas não são feitas com exceções, e, sim, com a regra, e esta aponta para os benefícios do desarmamento. Por temerem a difusão do conhecimento científico pelo debate, tudo fizeram para impedir a aprovação do referendo. Pois nosso esforço é o de popularizar as informações até aqui restritas aos centros de pesquisa.
Lancei agora o livro "Armas de Fogo: Proteção ou Risco?", reunindo o que há de mais atualizado sobre os prós e contras no uso de armas. Está sendo vendido por preço de revista também nas bancas de jornal, para que chegue ao povo. Nele, desmistifico a indústria de armas pequenas, que emprega menos de 2 mil funcionários e responde por apenas 0,048% da indústria nacional. E defendo o referendo, que significa um aperfeiçoamento da democracia brasileira. Dizem que "vai ser caro", quando custará pouco mais que os R$ 140 milhões investidos com o tratamento de 20 mil feridos por arma de fogo, a cada ano.
Por essas razões, no referendo diga SIM à vida.
Contra a indústria da morte.
Sociólogo do Viva Rio
O Estatuto e a ordem institucional
Wladimir Sérgio Reale*
O texto a seguir foi escrito na forma de uma peça jurídica e achamos por bem mantê-lo nesta forma para os leitores, já que esta foi a escolha feita pelo autor para o artigo de defesa do "Não", no referendo do próximo dia 23 de outubro
1. Preliminarmente, da inconstitucionalidade do art. 35 caput e parágrafos 1º e 2º. Violação dos artigos 5º, caput, I, XIII, XXII, XXXVI, LIV; 24, V, § 1º e 144, caput, todos da Constiuição Federal.
1.1. O art. 35, caput, e os seus parágrafos 1º e 2º, referidos em destaque, têm a seguinte redação:
"Art. 35 – É PROIBIDA A COMERCIALIZAÇÃO DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÃO EM TODO TERRITÓRIO NACIONAL, SALVO PARA AS ENTIDADES PREVISTAS NO ART. 6º DESTA LEI.
§ 1º - ESTE DISPOSITIVO, PARA ENTRAR EM VIGOR, DEPENDERÁ DE APROVAÇÃO MEDIANTE REFERENDO POPULAR, A SER REALIZADO EM OUTUBRO DE 2005.
1.2. Com efeito, verifica-se, de plano, a inconstitucionalidade da disposição contida no art. 35 e seus parágrafos da legislação citada:
1.2.1. A uma, porque se aprovada em referendo popular, a ser realizado em 23 de outubro de 2005, passa a ser proibida, a partir da data da publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral (§2º), a comercialização de arma de fogo e munição no país. Todavia, ofende o direito do comerciante e dos industriais a vedação da venda das armas e munições diretamente aos cidadãos comuns, na medida em que, de forma objetiva, está a impedir o exercício do comércio assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 170, caput e seu parágrafo único. Assim, o comerciante e o industrial não podem mais entregar a arma e a munição ao comprador. Como conseqüência lógica, nenhum cidadão poderá adquirir a propriedade desse bem móvel, ficando inviabilizada essa atividade mercantil lícita de armas de fogo.
Essa medida, não é e nunca foi o meio adequado a produzir o resultado pretendido (garantia permanente de segurança individual e coletiva, proteção do direito à vida, da incolumidade da pessoa e do seu patrimônio – C.F, art. 5º, caput c/c 144, caput), assim como nem atende à proporcionalidade em sentido estrito. Trata-se, na espécie, de direito básico garantido constitucionalmente aos brasileiros e aos estrangeiros residentes, à segurança, e à propriedade, e, conseqüentemente, à posse de armas e munições defensivas, nas condições e mediante as cautelas disciplinadas em lei, até porque não é capaz, o Estado, de garantir a segurança de todos todo tempo (e nunca foi em Estado algum, tanto que não se conhece sistema jurídico em que não se ache consagrado o direito à legitima defesa da pessoa e bens).
1.2.2. A duas, mantida a radical proibição da venda de armas de fogo e munições no país para os cidadãos, naturalmente a indústria e o comércio terão sérios prejuízos, na medida em que ficará inviabilizada essa atividade econômica lícita. Não há dúvida do que se está diante de clara inconstitucionalidade material (C.F., art. 5º, LIV), com ofensa também ao art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, por ocorrência de grave afronta ao exercício normal do direito de propriedade.
1.2.3. A três, em hipótese símile, cujo ato normativo federal restringiu, de maneira tão radical que praticamente inviabilizou, no período, a comercialização de armas de fogo, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 2.290-3-DF, deferiu o pedido de medida liminar para suspender a eficácia do art. 6º, e seus incisos, da Medida Provisória nº 2.054-4, de 28 de setembro de 2000, pelo qual suspendia-se, até 31 de dezembro de 2000, o registro de arma de fogo a que refere o art. 3º da Lei nº 9.437, de 1997.
1.2.4. Finalmente, a quatro, em relação à inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º, do art. 35 (referendo popular), e do Decreto Legislativo nº 780/05, vale destacar o entendimento dado pelo Vice-Presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Flávio Bierrembach, ao considerar "um absurdo jurídico" a possível realização de um referendo em 23 de outubro próximo sobre a proibição de venda de armas de fogo e munição no Brasil. "O cidadão de bem tem o direito de possuir uma arma para se defender dos criminosos."
Relator do projeto que convocou a Assembléia Nacional Constituinte, como deputado federal pelo antigo MDB de São Paulo, ele sustenta que "uma sociedade em que apenas a polícia e os facínoras podem estar armados não é nem será uma sociedade democrática" (Estado de São Paulo/Cidades/ Metrópole pág. C.3, 14.04.05).
"Nenhum governo tem a prerrogativa de interferir na esfera privada do cidadão para transformar um direito em crime. Sobretudo ao arrepio da Constituição, dos direitos humanos, de usos e costumes milenares que asseguram a igualdade de todos perante a Lei, a incolumidade da pessoa, o sagrado direito de defesa e proteção da casa como abrigo inviolável do cidadão (Correio Braziliense, 28.02.02).''
Por sua vez, o Referendo (§ 1º, do art. 35), aprovado pelo Decreto Legislativo nº 780, de 07/07/2005 resultará, destarte, em uma despesa para os cofres do Tesouro Nacional de aproximadamente R$ 600 milhões, ou seja, o custo de uma eleição. Essa substanciosa verba poderia ser utilizada na defesa do cidadão, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, sempre carente de recursos, como é notório.
No Estado Democrático de Direito, como no Brasil, a paz social deve ser mantida como garantia constitucional. A segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos (C.F., art. 144). Os cidadãos, portanto, não podem depender, exclusivamente, do Estado, para que possam ter acesso às armas e munições para o exercício de sua legítima defesa pessoal e de terceiros, desde que cumpram fielmente o que se contém na Portaria 036, de 1999, do Chefe do Departamento de Material Bélico do Comando do Exército, que dispõe sobre as "normas que regulam o comércio de armas e munições".
Uma eventual proibição radical de aquisição de armas e munições diretamente no comércio e indústria para os cidadãos de bem, afronta o princípio da razoabilidade violando, em conseqüência, o devido processo legal que é amparado pelo art. 5°, inciso LIV, da Constituição Federal.
VOTE Nº 1 – NÃO.
Presidente da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol), advogado, com exercício no STF.