Gustavo Loyola*
É verdade que o endividamento externo pode ser fonte de instabilidade macroeconômica e, portanto, de paradas do processo de crescimento econômico. Ele pode gerar episódios de alta volatilidade de produtos e do emprego, principalmente, as chamadas paradas súbitas, com o corte abrupto dos fluxos de financiamento externo e isso, evidentemente, gera um problema macroeconômico, com a necessidade de políticas monetárias e fiscais que também atuam na direção da redução do crescimento econômico. Sem dúvida, a gente pode identificar claramente na história recente do Brasil esses episódios e as suas repercussões sobre o crescimento econômico.
utro problema que tem a ver com a questão do endividamento externo, e é uma questão que agrava a exposição das economias emergentes, é justamente o descasamento de moedas. A dificuldade de se emitir dívida na mesma moeda do país. O Brasil, como os outros emergentes, emite dívidas em moeda estrangeira, moeda que não é a das receitas do setor público e da maioria das empresas, embora as empresas exportadoras tenham essa característica de ter receitas em moedas estrangeiras.
Um segundo fato é que a dívida externa tem caído sistematicamente, desde a mudança do regime cambial, como previsto na literatura econômica. A economia não é matemática, mas a teoria às vezes funciona, pelo menos do ponto de vista qualitativo. Na realidade, o câmbio fixo leva a um acúmulo maior de dívida externa por vários motivos e o regime de taxa flutuante vai na direção da contração do endividamento externo e exatamente é isso o que está acontecendo.
O terceiro fato sobre o endividamento e já olhando a questão da dívida interna é que a dívida pública interna tem um perfil totalmente inadequado, do ponto de vista de indexadores, muito embora a relação dívida/PIB do Brasil não seja exageradamente alta, quer dizer, o Brasil não é um país onde o seu setor público seja exagerado. Na verdade, há países muito mais endividados que o Brasil, mas que têm perfis de dívidas muito melhores.
Finalmente, outro fato que não dá para negar e, aliás, me parece ser o grande desafio do ponto de vista macroeconômico no Brasil, é a questão das taxas reais de juros, que são muito altas, historicamente. O Brasil é, de fato, o campeão mundial da taxa de juros.
Mitos da crítica econômica
Agora existem alguns mitos, a meu ver. O primeiro é que o Brasil não cresce por causa da dívida externa. É essa idéia de causalidade que me incomoda. Na realidade, embora a dívida externa possa, como disse há pouco, em alguns momentos, ser fonte de instabilidade macroeconômica, na realidade, as causas do crescimento ou do não crescimento são muito mais profundas e esses episódios são muito mais sintomas de uma doença.
Ou seja, a dívida externa como causadora do não crescimento tem a ver com problemas que são muito mais profundos, principalmente, em relação às questões institucionais. Não é verdade que, por exemplo, se a dívida externa, por algum lado, continuar a desaparecer, o Brasil volta a crescer automaticamente. Provavelmente, se não fizer nada o Brasil volta a acumular dívida externa.
O outro mito, a meu ver, é que os juros altos são resultados de erros sistemáticos da política monetária. É uma idéia do tipo: "só os idiotas ocupam a diretoria do Banco Central", algo parecido com isso. Na realidade, embora erros de política monetária tenham sido cometidos, o juro alto no Brasil é problema muito mais complexo. Tem a ver com questões estruturais, com a própria situação de solvência do setor público, com a estrutura do sistema financeiro, a questão tributária etc.
Uma outra questão é o que seria uma solução para o problema da dívida. Se ele existe, e vamos supor que ele exista, será que a solução está na sua renegociação? Eu acho que esse é outro mito. Não é que não possa dizer que em algumas circunstâncias seja necessária; muitas vezes não há outra saída, o país, assim como uma empresa, está em uma situação de insolvência, inadimplência etc, e é melhor renegociar do que, simplesmente, não reconhecer o problema. Então, a renegociação decorre de uma situação de insolvência ou de liquidez no pagamento da dívida.
Receita de bolo
A dívida externa tem caído, em relação ao PIB, não apenas pela redução do endividamento bruto, mas também pelo aumento das reservas internacionais. O que determinou a trajetória do endividamento no setor público do Brasil, nos últimos anos? Em primeiro lugar, o reconhecimento que o Brasil é campeão em não contabilização de dívidas. O setor público sempre fez isso. Temos um endividamento público que não está contabilizado, que são os precatórios. Existe um volume muito grande de precatórios, principalmente, dos estados, municípios e capitais, que não estão sendo pagos. E estes valores não são normalmente registrados quando se faz contabilidade de dívida para efeitos macroeconômicos.
O segundo fator são os déficits fiscais primários, que se acumularam ao longo do tempo. Esses déficits eram financiados, antes do Plano Real, entre outras coisas, pela própria dinâmica inflacionária. É verdade que a política fiscal do governo FHC, nos primeiros quatro anos, deixou muito a desejar. Foi uma política pouco restritiva nos gastos primários, o que depois gerou uma necessidade de um ajuste muito maior, a partir da crise de 1998.
Duas questões que se colocam sobre o endividamento público brasileiro. Existe um problema de solvência e se a dívida é sustentável. A definição técnica de solvência é quando o valor presente descontado nos gastos primários correntes não for maior do que também o valor presente descontado nas suas receitas primárias correntes. Essa é a idéia de solvência, que é um conceito que se aplica também às empresas e isso pode ser mostrado numa equação, mas basicamente as variáveis que importam aí são a relação entre o superávit primário e o PIB, após a taxa de juros real, o crescimento do PIB e a relação inicial dívida/ PIB.
Evidentemente, existe uma receitinha de bolo para que o país permaneça solvente: é crescer muito com juros baixos e elevar o superávit primário. Basicamente essa é a receita de bolo. A questão que se coloca é se é possível para o Brasil sustentar esse tipo de política durante um tempo suficiente para resolver o problema da dívida. Por exemplo, existem várias simulações que mostram que o endividamento público é sustentável. Esse ano, a relação dívida/PIB deve fechar em torno de 52%. Mas, é possível também traçar cenários de estresse de solvência. Por exemplo, se tiver crescimento de apenas 1,5% e juros reais de 11%, com o câmbio parado, a dívida líquida poderia ir para 80% do PIB, em 2010. Ou seja, a dívida é sustentável, mas precisa ser gerida com cuidado, principalmente, no que diz respeito à geração do superávit primário nos próximos anos.
Por que o país cresce pouco?
Um outro problema sério da dívida interna é a composição e a maturidade dessa dívida. A dívida mobiliária, doméstica, é constituída por papéis indexados à taxa Selic, ou seja, a taxa de juros que é paga nestes papéis é de curtíssimo prazo. Há dificuldade para o alongamento dos prazos, em função dos ativos financeiros. É interessante observar como a estrutura dos ativos financeiros no Brasil é a mesma, hoje, do que era antes do Plano Real. Ou seja, apesar da estabilização, temos instrumentos financeiros de curtíssimo prazo predominando ainda no mercado financeiro. Isso leva a uma redução da eficácia dos mecanismos de transição da política monetária, porque acaba gerando um círculo vicioso onde há necessidade de juros reais mais altos para atingir o objetivo.
Com relação ao problema dos juros, a pergunta que se coloca é se o Brasil está condenado a ter para sempre os juros reais mais altos do planeta. O problema é barbeiragem do Banco Central? Será que é azar? Será que é problema do risco fiscal? Do risco político institucional? Ou se é uma coisa mais microestrutural do sistema financeiro? A meu ver, existe um componente de cada um desses fatores. Acho que a barbeiragem do BC pode levar, eventualmente, os juros ficarem mais altos durante um tempo, mas existem outros problemas estruturais que estão aí também mencionados.
Daí vem a questão do crescimento. Por que o Brasil cresce pouco? Basicamente, eu acho que existe a questão das nossas instituições que são fracas ainda; o Brasil não tem um ambiente favorável ao investimento e sem investimento não se cresce. Erros de política econômica, evidentemente, levam à redução do crescimento, principalmente porque o setor público inibe a atividade do setor privado; há carência de poupança doméstica e um Estado inoperante, ineficaz.
A saída para o crescimento passa necessariamente pelo aumento do investimento privado, pela elevação dos padrões educacionais, entre outras coisas. Quais são as conclusões? Primeiro, o problema da dívida pode ser resolvido com ajustes fiscais e crescimento sustentável. E o crescimento sustentável, na realidade, não pode existir na presença de uma dívida externa relativamente alta. Segundo, o motor do crescimento deve ser o setor privado, cabendo ao Estado criar e manter um clima favorável aos negócios. Terceiro, o calote da dívida, além de efeitos políticos incalculáveis, representaria um golpe mortal nos mecanismos de formação de poupança de longo prazo, que passa especificamente pelo problema da dívida interna. Se bem que é quase um milagre que tenhamos passado pelo Plano Collor, com poucos ferimentos. Finalmente, o que é importante para o crescimento são as instituições do país. Talvez o grande papel dos economistas seja contribuir para o fortalecimento dessas instituições
* Economista, ex-presidente do Banco Central.