Pensando o Brasil
Saúde pública
José Carvalho de Noronha
Médico e pesquisador da Fiocruz
Como recuperar a saúde pública
O brasileiro hoje vive mais. A esperança de vida tem crescido. De 1991 a 2003, saltamos de 66 para 69 anos, e já estamos em 70,3 anos de esperança de vida, o que é uma mudança significativa. Mas, não estamos tão bem. O Canadá, que é um país com uma das maiores esperanças de vida do mundo, ou o Japão, têm 80, a Suécia 81 - é um teto a alcançar. Chile e Cuba, que é um país extremamente pobre, têm um padrão semelhante. Estamos nove ou 10 anos distantes do Canadá; de Cuba e do Chile, apenas dois. Países mais próximos, como Argentina e Colômbia, também estão à nossa frente. Atrás só Bolívia, Haiti e El Salvador. Além disso, existem grandes diferenças regionais. O Rio Grande do Sul tem a maior esperança de vida, beirando 73 anos; já Alagoas, não encosta nos 65. Todos os estados apresentaram melhora, mas as diferenças regionais ainda são extremamente acentuadas.
Um outro indicador que usamos para verificar como está a saúde do povo é a chamada mortalidade infantil. Ele é muito sensível às condições sociais e econômicas do país, e ela é medida pelo número de mortes ocorridas em menores de um ano, sobre o total de nascidos vivos, naquele ano. De 1930 a 2000, houve um movimento acentuado de queda, o Brasil está mudando bastante e também o Nordeste, mantendo sempre taxas superiores. Mas estamos abaixo e o próprio Nordeste já chegou nos 40 por mil nascidos. Há muita desigualdade regional.
O indicador "mortalidade infantil" é muito sensível às ações que se exercem sobre o ambiente. Se pudermos isolar dois fatores que são responsáveis pela queda da mortalidade infantil, um deles, muito importante, é a qualidade da água; outro, a capacidade de renda para comer. Nutrição e água potável são os mais importantes. Cuba, país muito mais pobre que o Brasil, tem índice de mortalidade infantil igual ao Canadá. Vizinhos como o México também têm padrões superiores.
As mudanças demográficas acontecidas nos últimos 30, 40 anos alteraram muito o perfil das pessoas. Ainda morre muita gente de doenças infecciosas, diarréias, pneumonias, mas hoje em dia já não altera a mortalidade dos brasileiros, mesmo nas regiões mais pobres, como o Norte e o Nordeste. As doenças infecciosas já não têm mais peso tão importante. Temos agora o predomínio das doenças do aparelho circulatório, já maior no Sudeste e Sul, e que ocorrem nos nenéns depois de nascidos. E a grande epidemia que são as causas externas - homicídios, mortes por agressão, tiros, facas, a violência - ou os acidentes de trânsito.
Vítimas da violência
Para se ter uma idéia, temos no Brasil uma guerra, independentemente do PCC. Morrem 42 mil brasileiros, por ano, assassinados. Em 10 anos, foram mais de 400 mil vítimas da violência. É uma epidemia! É um dos problemas de saúde pública, hoje, mais dramáticos. Ainda tem muita gente morrendo de diarréia, tuberculose, mas é relativo, e no peso global já não ocupa o espaço central.
Nas mortes por diarréia, por exemplo, se vê novamente dois brasis: o Nordeste, com um alto índice, e o Sul, não. Com as doenças do coração, o mapa inverte-se e se encontra maior índice no Sul e Sudeste. Na mortalidade por homicídio, o dado é preocupante. A zona de crime começa a se espalhar pelo país inteiro. E esses dados não são ocorrências policiais, são da saúde.
O que adoece o brasileiro? A principal causa de internação hospitalar é o parto, mas você pode ver também que pneumonias, a maior parte delas, acontecem nos idosos. Aborto também é uma das causas de internação hospitalar. Tem ainda a asma, doença cardíaca, violência etc. O perfil está alterado, e não é mais aquele em que predominavam as doenças infecciosas.
Os números da seguridade social
O SUS é o Sistema Único de Saúde, aprovado na Constituição de 1988, e universal em alguns aspectos. Na melhoria do acesso, temos dados curiosos de alguns programas do SUS que deram certo, como de duas pesquisas feitas com amostra domiciliar, em 1998 e 2003: conseguiu-se aumentar o atendimento em todas as classes sociais e, no programa Saúde da Família, uma alteração na regra de pagamento, com a transferência de recurso para o município, fez aumentar a oferta. Houve aumento tanto nas crianças quanto nas pessoas com maior idade, ou seja, em todas as faixas etárias, por conta dessa universalização que ocorreu no SUS, em 1994. Outro dado é que as pessoas relatam ter um serviço regular. Esse indicador é até melhor que o outro. Mostra que, apesar dos problemas, o SUS tem surtido efeito.
Há problemas, como o da saúde odontológica. A discriminação por faixa de renda ainda é brutal, mas houve alguma redução nesse período de cinco anos, e mais recentemente com o programa de saúde oral. Apesar da deficiência, já se consegue fazer um trabalho nessa área. Tanto que aumentou o número de pessoas que procuraram o serviço de postos ou centros de saúde, de 42% para 52%.
Há distorções, algumas assustadoras. Alguns dados referentes a 2000 mostram os esquemas de financiamento público dos países. Fora os EUA e a Coréia, todos os outros países têm um sistema público. Os EUA têm 45% do gasto público em programas de saúde. Estamos com um comprometimento do gasto público menor que o dos EUA. Temos um sistema com potencialidade, mas uma sociedade onde a cobertura do plano de saúde, na população com mais de 20 salários mínimos, em 2003, é de 80%. E o gasto dessas famílias é oito vezes superior ao gasto público. Ou seja, são dois sistemas fracionados. A receita das hoje operadoras de planos de saúde,em 2004, foi de R$ 28 bilhões. Esse valor foi o orçamento do Ministério da Saúde, em 2004, para cobrir 25% da população.
Uma segunda questão é o gasto das famílias com remédios, que é muito maior do que com planos de saúde. São gastos do próprio bolso da pessoa. O governo começou a enfrentar essa questão com a farmácia popular e, recentemente, com mais duas medidas: os pontos de vendas, em farmácias, da linha para diabetes e a venda fracionada de medicamentos, que ainda está em implantação.
Desvio na destinação de recursos
Temos, um sistema que deve ser defendido porque é público, é universal, e ao mesmo tempo temos distorções graves na formatação desse sistema, porque, ao contrário do que se imagina, o plano de saúde não é complementar, e sim competitivo ao sistema público. Os países europeus, todos eles, mantêm o grosso do gasto em saúde, que é público. Por que essas dificuldades aumentaram aqui? Primeiro, porque em 1988 conseguimos o que Ulisses Guimarães chamava de "Constituição cidadã". E ela, conforme a combatem a direita, as nossas elites, foi absolutamente favorável e ampliou a idéia de Seguridade Social.
Ela entendeu que saúde, previdência e assistência social têm que estar juntas, ser integradas. Um parágrafo único diz que a Seguridade Social tem que se pautar pela universalidade da cobertura do atendimento. E qual é o financiamento da Seguridade? São recursos da União, estados e municípios. A receita da Seguridade, seguindo a Constituição, em 2004, foi de R$ 236, 4 bilhões. A despesa com saúde, previdência e outros encargos deu R$ R$ 223,1 bi, ainda incluindo quase R$ 40 bilhões, relativos a gastos previdenciários da União. Ou seja, houve um superávit de R$ 53 bilhões.
Os encargos financeiros da União, juros mais amortização, foram de R$ 145,9 bilhões, em 2004. Só com juros foram R$ 74,4 bi e o orçamento da saúde foi de R$ 32,3 bilhões. Se colocar 25% na Seguridade, o orçamento da saúde seria de R$ 59 bi. O avanço do gasto privado é porque houve uma retração do gasto público. A dificuldade que encontramos na gestão do serviço de maior complexidade dos hospitais e serviços de emergência é porque estamos com metade do orçamento que era praticado. São serviços que requerem maior complexidade. Se tivéssemos praticando o que foi feito na segunda metade dos anos 80 eram 30%, ou seja, iríamos para quase R$ 80 bilhões de orçamento. Esse dinheiro está sendo desviado para outros fins. Metade do financiamento dos gastos públicos com saúde vem da União, com a participação de 22% dos estados e 27% dos municípios.
O que seria a reconstrução da Seguridade Social? O governo Collor aprovou a lei da saúde, mas ao mesmo tempo, no final do governo Sarney, a pretexto de integrar as ações de saúde no interior do Ministério da Saúde, fraturou-se o conceito de Seguridade Social. Penso que temos que defender a Seguridade Social, em uma etapa transitória e programaticamente. Primeiro, garantir o princípio da universalidade da cobertura de atendimento no SUS. Todo brasileiro tem direito aos benefícios da Seguridade Social, independentemente da sua capacidade contributiva.
É preciso a recomposição do orçamento. Como fazer isso? Acabar com o lucro sobre o orçamento da Seguridade Social. Pode ter lucro em outros setores, mas na Seguridade Social é preciso recompor o orçamento da saúde, da assistência social etc. Ou seja, a integração programática e administrativa dos seus componentes, uma gestão integrada. Evidentemente, que uma parte importante dessa parte da Previdência é o emprego formal. Então, é preciso aumentar a formalidade. Finalmente, nada disso adianta se não tivermos uma política agressiva de desenvolvimento econômico, com prioridade nas gerações de emprego e renda.