João Sicsú e Lena Lavinas
(Instituto de Economia da UFRJ)
Desde a Revolução de 1917 na Rússia até a queda do muro de Berlim em 1989, o mundo era bipolar. Havia dois blocos monótonos de idéias. Socialistas e capitalistas disputavam idéias e poder. Para os primeiros, o Estado deveria ser o proprietário dos meios de produção. Para os capitalistas, os meios de produção deveriam ser vendidos no mercado privado. Estes recortes intelectuais e políticos - grossos, míopes - não revelavam a riqueza dos projetos que germinaram por todo o século XX. Apesar da monotonia dos processos intelectual e político, a realidade já era mais rica e pronunciava detalhes fundamentais de projetos econômico-sociais.
A queda do Muro de Berlim e, posteriormente, a intensificação dos processos financeiros globais e as crises econômicas e sociais em diversos países em desenvolvimento tornaram mais nítidos projetos que o mundo bipolarizado ofuscou. Em verdade, existiam pelo menos dois projetos de democracia e capitalismo. Outros projetos ganharam forma durante o século XX, entre eles, o projeto chinês de capitalismo dirigido pelo Estado e de escassez de democracia.
O socialismo real foi superado pela realidade. Restam dois grandes projetos que buscam combinar democracia e capitalismo. O projeto americano de liberalismo econômico puro e simples, onde o objetivo é apenas o lucro, o crescimento das empresas, os resultados de seus balanços - em resumo, um projeto de acumulação de riqueza material e financeira. E o projeto europeu de forte presença do Estado como ente regulador, onde o objetivo é a promoção de relações seguras entre o mercado, os indivíduos e o meio ambiente. Do ponto de vista das relações internacionais, o projeto americano é nitidamente imperial. Já o projeto europeu parece ser multilateral, embora, ao longo da história, fortes propensões imperialistas européias tenham sido reveladas.
O liberalismo americano revela sua adesão ao aumento da produtividade do trabalho, à competição, ao vigor empresarial e financeiro. Revela também faces negativas: sua despreocupação com o indivíduo e com o meio ambiente. O liberalismo americano não oferece segurança social aos indivíduos. Daí a necessidade de enriquecimento individual e familiar para que as dificuldades inerentes da vida sejam enfrentadas com poder econômico. Não seria necessário um serviço nacional de saúde ou de educação públicos, gratuitos e de qualidade. Basta à família rica pagar pelos serviços de saúde ou de educação que consumirá. Aos pobres, que são incompetentes, porque não foram capazes de prosperar, deve ser oferecida uma reduzida compensação monetária e serviços de educação e saúde rudimentares. A natureza é desprezada, sua destruição obedece à lógica da acumulação. Não é entendido que o meio ambiente deve ser manejado, o que significa muitas vezes, preservá-lo, para aumentar a qualidade de vida desta e de futuras gerações.
A França é um dos símbolos do projeto capitalista europeu. Possui uma economia baseada no livre mercado, com regras claras de direitos e deveres, com mecanismos vigorosos de promoção do bem-estar social, onde se valoriza o aumento da produtividade e da competição, desde que estejam subordinadas à lógica da felicidade individual e da utilização sustentável do meio ambiente. Na França, não é necessário ser abastado para ter acesso a tratamentos de saúde dos mais elementares aos mais sofisticados. A afluência não é pré-condição para usufruir de segurança e qualidade de vida.
Na França e em outros países europeus está institucionalizado um capitalismo que dá certo, e que é incompatível até mesmo com as orientações específicas e de políticas macroeconômicas do Tratado de Maastricht. Há uma incompatibilidade latente, por exemplo, entre a manutenção de regras fiscais orçamentárias rígidas e o modo de vida francês, cuja qualidade é reconhecida e até invejada. Quando os ingleses mudam-se para a Provence ou a Dordogne e compram os velhos mas de pedra para ali viverem, não buscam tão-somente sólidos investimentos imobiliários, tal como na City, mas um bem-estar materializado nos sabores, odores e cores celebrados no best-seller de Peter Mayle, além daquilo que o Estado promoveu através de massivos investimentos públicos: um sistema de transporte único na Europa, altamente subsidiado, integrado e de alta tecnologia; um sistema de saúde público e universal considerado o melhor do mundo, disseminado por todo o país e inclusivo; uma infra-estrutura urbana que adentra os vilarejos mais remotos, mesclando patrimônio histórico, preservação e conforto.
Há uma impossibilidade nítida, clara, existente entre uma política fiscal austera defendida por conservadores e a manutenção da França em estado de permanente desenvolvimento econômico e social. Nicolas Sarkozy, representante da direita mais aguerrida, recém-eleito presidente, tem dado sinais inequívocos de entender o paradoxo. É hoje a voz dissonante no âmbito da Comunidade Européia, a incomodar britânicos e alemães, seus aliados de ontem. Contesta o euro valorizado que promove deslocalização de empresas e desemprego. Contesta, portanto, a política do Banco Central Europeu e sua autonomia, o que lhe retira o rótulo de liberal pró-europeu e o aproxima da figura de um bom intervencionista gaullista comprometido com a grandeza da própria nação em prol de uma Europa forte. Quando declara "peço que se faça com o euro o que os americanos fazem com o dólar, os chineses fazem com o yuan, os japoneses fazem com o yen e - com toda a franqueza - os ingleses fazem com a libra esterlina...." ou quando indaga já ciente da resposta "será que os países especializam-se, espontaneamente, na construção de aviões, trens, carros?" , Sarkozy desnuda tal impossibilidade.
Em entrevista ao jornal Libération (9 de julho de 2007), Jean-Luc Gréau, economista francês do campo conservador, por vários anos consultor primeiramente do CNPF (Conselho Nacional do Patronato Francês) e, mais tarde do MEDEF (Movimento das Empresas Francesas) - duas grandes organizações patronais francesas - faz coro com o presidente francês e declara: "a volta ao protecionismo é inelutável", para que a França e a Europa não se transformem em um deserto industrial em duas décadas. Na sua mea culpa, afirma que denunciar os efeitos perversos do néo-liberalismo é praticamente impossível por pressão do setor financeiro para quem a defesa da indústria nacional nada mais é que "um arcaísmo econômico".
Outros adversários do "arcaísmo" argumentam que uma geração gasta demais em proveito próprio, gerando déficits e dívidas públicas, e deixando a conta para ser paga por seus netos. Entretanto, o gasto público em infra-estrutura, na preservação do sistema de saúde, do sistema educacional, os benefícios sociais instituídos, são gastos que favorecem gerações futuras, que também hão de pagar a conta, e que hão de se orgulhar de terem tido gerações passadas que investiram para o seu bem-estar presente. Para aqueles que pensam que o gasto de hoje somente beneficia a geração de agora, basta perguntar: qual a idade do metrô de Paris? qual a idade das suas universidade públicas? quem será beneficiado com os gastos correntes de preservação do meio ambiente?
O investimento público não visa somente ganhos imediatos, mas visa a construção de uma história de nação, com passado, presente e garantia de futuro. A universalização do direito a uma vida com alta qualidade no espaço e ao longo do tempo é a marca distintiva do capitalismo europeu que deu certo.
1Citado pelo Jornal Libération na matéria "L´Europe Sautillante de Nicolas Sarkozy" (09/07/2007)..