Paulo Passarinho
Conforme estabelecido pelo governo federal no final do ano passado, quando da sua vitória parcial na disputa pela aprovação da prorrogação da CPMF e da DRU, desde o final de fevereiro tramita no Congresso uma nova proposta de alteração constitucional da ordem tributária.
Na exposição de motivos do ministro da Fazenda, é destacado que os objetivos principais da proposta são: "simplificar o sistema tributário nacional, avançar no processo de desoneração tributária e eliminar distorções que prejudicam o crescimento da economia brasileira e a competitividade de nossas empresas, principalmente no que diz respeito à chamada guerra fiscal entre os Estados".
Objetivamente, a proposta unifica a cobrança da Cofins, do PIS/Pasep, da Cide e do Salário-Educação em um novo imposto federal a ser criado, o IVA-Federal (Imposto sobre o Valor Agregado); agrega a cobrança da CSLL ao Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ); e propõe a unificação das legislações estaduais do ICMS, definindo-se alíquotas uniformes para a cobrança desse imposto e a sua incidência no local de destino das mercadorias.
A proposta não enfrenta, assim, a principal deformação da atual estrutura tributária do Brasil, que é a prevalência dos chamados impostos indiretos, em relação aos impostos diretos, na formação da carga tributária brasileira. Esse é o principal fator, mas não exclusivo, que caracteriza o recolhimento de impostos no país como regressivo e injusto em relação à distribuição de renda.
As direitas brasileiras e a "imprensa livre" do país – sua porta-voz direta – convencionaram caracterizar a carga de impostos no Brasil como muito elevada. Com esse tipo de abordagem, abstraem a discussão sobre o tipo de Estado que precisamos – fundamental para definir o quanto de recursos financeiros seria necessário para financiá-lo, e o como fazê-lo -, além de procurar trabalhar politicamente com a imensa insatisfação dos pobres e assalariados médios, os grandes apenados pela estrutura tributária.
Esta é a principal deformação realmente existente na cobrança de impostos: os ricos e detentores de propriedades – especialmente rurais – pagam muito menos impostos, proporcionalmente ao que ganham e possuem, do que os demais segmentos da população.
Em todos os países desenvolvidos do mundo, a carga tributária é formada principalmente pela taxação direta da renda e das propriedades. Quanto mais se tem, mais se paga, maior é a contribuição ao financiamento do Estado. É a idéia da progressividade na cobrança de tributos, uma das formas de se atenuar os desequilíbrios da distribuição de renda e riquezas em uma sociedade capitalista.
Impostos sobre a produção e o consumo devem ser seletivos, e voltados à preocupação com o desenvolvimento produtivo e à justiça tributária, inspirada no princípio da progressividade.
A Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, a partir de dados do FMI e da Secretaria da Receita Federal, demonstra que em um grupo de países selecionados (Noruega, Dinamarca, Suécia, Estados Unidos, França, Alemanha, Japão, dentre outros) o peso médio dos impostos sobre a renda e as propriedades é de 53%, em relação ao total da carga tributária de cada um deles. Aqui no Brasil, o peso relativo desses chamados impostos diretos é de apenas 30%, sendo os 70% restantes oriundos de taxação indireta, incidente sobre a produção e a circulação de mercadorias.
Os impostos indiretos são embutidos no preço final dos produtos e serviços comercializados. Desse modo, quem de fato os paga são os consumidores finais. Levando-se em conta que os mais pobres consomem tudo aquilo que ganham, proporcionalmente aos seus rendimentos, acabam por pagar uma maior carga de impostos do que os segmentos de maior renda – que têm condições de poupar parte dos seus rendimentos.
Sendo assim, uma primeira característica da proposta apresentada pelo governo é que ela cristaliza e dá prosseguimento a injusta estrutura tributária em vigor, fortemente regressiva.
Porém, os problemas não se resumem a esse ponto.
A proposta oficial desfigura o atual esquema de financiamento do Orçamento da Seguridade Social.
Ao propor que a Cofins – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - e a CSLL – Contribuição sobre o Lucro Líquido das empresas - passem a ser embutidos, respectivamente, no novo IVA-Federal e no IRPJ, essas importantes receitas da seguridade social passarão a integrar, de fato, o conjunto de receitas do Orçamento do Tesouro.
Qual o problema da aparente troca de seis por meia dúzia? Afinal, o governo teve inclusive a preocupação de assegurar percentuais dos futuros IVA-Federal e IRPJ, destinados especificamente para a seguridade social, de modo a possibilitar a não perda de recursos para essa área, de acordo com o proporcional volume de recursos que hoje é garantido ao Orçamento da Seguridade Social.
O problema é que, caso esse tipo de mudança seja aprovada, essas atuais receitas – com destinação constitucionalmente definida como receitas da seguridade social – passariam a integrar meramente o orçamento do Tesouro, necessitando de serem transferidas para o financiamento das despesas da seguridade social.
Se hoje, pertencendo essas receitas ao orçamento da seguridade social, os governos insistem em propalar o suposto "déficit da previdência", imaginem o que poderão alardear quando formalmente essas receitas deixarem de integrar as receitas específicas da seguridade?
Está claro que estaremos reforçando, caso seja aprovada a proposta, as possibilidades de análises que acusam o custo "excessivo" da seguridade social como o principal vilão das contas públicas.
Mais grave: como a alíquota do IVA-Federal será definida em legislação infraconstitucional, caso haja uma redução da base de incidência do novo imposto em relação ao esquema hoje em vigor, sempre uma possibilidade, a própria parcela a ser transferida para a seguridade social sofrerá redução, diminuindo os recursos da área.
Esse mesmo tipo de problema poderá também afetar os recursos hoje arrecadados pelo Pis/Pasep, pela Cide e para o salário-educação.
Além disso, há também o compromisso do governo em apresentar projeto de lei reduzindo a contribuição patronal para a Previdência Social dos atuais 20% incidentes sobre a folha de empregados para 14%, o que acarretará uma redução dessa receita.
Vou ficando por aqui, para não causar ao leitor maiores preocupações. Mas voltarei ao assunto.
Afinal, essa já é a segunda vez – a primeira foi em 2003 – que o, para muitos, progressista governo Lula apresenta proposta de reforma tributária, sem que nenhum dos seus compromissos históricos com a justiça tributária e a distribuição de renda tenha sido contemplado, minimamente.
11/03/2008