A CRISE DE 2008 E SEUS IMPACTOS NA QUESTÃO SOCIAL - RODRIGO CASTELO BRANCO

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Rodrigo Castelo Branco

 

O desenvolvimento da atual crise aponta para o seu contínuo aprofundamento. Tudo indica que a crise de 2008 não é conjuntural, nem deriva de falhas pontuais do mercado. Ela deve ser relativamente duradoura, e suas principais causas residem no próprio modo de operação do padrão de acumulação capitalista efetivado a partir da contra-revolução neoliberal de 1979-1980.

 

Salvo raras exceções, o mundo todo deve entrar em um período de forte recessão econômica. As conseqüências e a profundidade desta crise, contudo, só não serão maiores porque governos das principais potências mundiais estão injetando uma fabulosa soma financeira nas suas economias. Basicamente, os governos das nações desenvolvidas estão comprando ações, ativos e dívidas das instituições financeiras, garantindo depósitos bancários dos clientes das instituições e provendo liquidez para os empréstimos interbancários.

 

Os números das operações de salvamento das instituições rentistas são impressionantes. Nos Estados Unidos (EUA), a administração de George W. Bush aprovou, no início de outubro de 2008, um pacote no valor de US$ 850 bilhões para socorrer bancos, seguradoras e fundos de investimento em sérias dificuldades financeiras. Empresas de grande porte, como Citigroup, JP Morgan, Bank of America, Goldman Sachs e outros, receberam, cada um, uma ajuda de bilhões de dólares para liquidar ativos podres dos seus balanços e, em alguns casos, para a compra de pequenos e médios bancos, medida que irá centralizar ainda mais o capital nas mãos de uma pequena elite rentista.

 

Dentro deste aporte bilionário, estão previstas medidas que surpreenderam a muitos, inclusive do próprio mercado financeiro e dos setores neoliberais mais radicais. O governo dos EUA, contrariando todo o receituário (neo)liberal, estatizou algumas das principais instituições financeiras do país, como a seguradora AIG e as empresas de empréstimos hipotecários Freddie Mac e Fannie Mae.

 

A este pacote aprovado, podemos somar os cerca de US$ 3.2 trilhões que o banco central estadunidense, o Federal Reserve (FED), deve disponibilizar aos mercados financeiros na forma de linhas de créditos de curto prazo e de garantias aos depósitos dos correntistas e de pequenas empresas. O total da intervenção do Estado norte-americano na economia, portanto, ficaria em torno de US$ 4 trilhões.

 

Não são somente os Estados Unidos que estão salvando, a toque de caixa, as suas elites rentistas. A União Européia (UE) também vem implementando ações conjuntas contra a crise. Após reuniões e debates envolvendo todos os seus 27 membros, a UE negociou e aprovou, em regime de urgência, um pacote de medidas de ajuda as suas praças financeiras, que inclui um aporte de €2.2 trilhões (cerca de US$ 3 trilhões) nas instituições virtualmente quebradas, alterações nas regras contábeis dos bancos e novos mecanismos de regulação das operações financeiras. O governo alemão despejará a maior quantia, algo em torno de € 500 bilhões; depois vem a França, com € 360 bilhões, a Holanda (€ 200 bilhões) e a Espanha (€ 100 bilhões). Outras nações européias que não fazem parte da UE também programam forte intervenção nos seus mercados. A Grã-Bretanha estatizou parte do seu sistema financeiro, adquirindo alguns importantes bancos nacionais, e a Rússia pretende injetar algo em torno de US$ 90 bilhões na economia, além de estar negociando um empréstimo para tirar a Islândia, nação com o maior Índice de Desenvolvimento Humano do mundo, da completa bancarrota.

 

A crise, contudo, não deve ser resumida à crise dos bancos. Ela é ainda mais grave, e atingirá, de forma muito desigual, os mais diferentes sujeitos históricos. Na nossa opinião, os efeitos mais drásticos da crise recairão sobre a classe trabalhadora. Vejamos alguns números que embasam a nossa hipótese.

 

Os efeitos da crise financeira já se fazem presentes no mundo do trabalho. A falência de diversas empresas, bem como a diminuição do crédito em circulação, reduzem os níveis de consumo e investimento, o que gera, conseqüentemente, a queda no nível das atividades econômicas. O resultado mais imediato deste ciclo econômico descendente é o aumento do desemprego dos trabalhadores.

 

Nos Estados Unidos, epicentro da atual crise, segundo dados do Departamento do Trabalho, os pedidos nacionais de auxílio-desemprego aumentaram consideravelmente, alcançando 497 mil pedidos. É a maior marca registrada desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, sinalizando fortes indícios de recessão na maior economia mundial. A previsão é de piora do quadro social, pois se estima que 100 mil trabalhadores percam, a cada mês, seus postos de trabalho, o que pode resultar em um aumento na taxa de desemprego do país de 6% para 8%. No mês de outubro, 240 mil vagas foram fechadas; no acumulado do ano, 1,2 milhões de postos de trabalho desapareceram. Conforme declara Joseph Stiglitz, "os Estados Unidos não estão tecnicamente em recessão. Mas isso é menos importante que o fato de que a economia vai operar bem abaixo de seu potencial, e o desemprego vai crescer".

 

A situação do desemprego no mundo não é diferente. As expectativas globais apontam para o aumento do desemprego. Conforme estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a atual crise financeira levará ao fechamento de 20 milhões de postos de trabalho no período entre janeiro de 2008 e dezembro de 2009. Com isto, o número de desempregados mundiais subirá de 190 milhões para 210 milhões. O estudo da OIT baseou-se em projeções oficiais do FMI, da ONU e das economias de diversos países, e contém uma importante advertência: "achamos que este cálculo ainda pode estar subestimado, pois não sabemos como vai evoluir a crise", disse Juan Somavía, diretor-geral da OIT.

 

Um segundo efeito da crise financeira sobre a classe trabalhadora, e que merece a nossa atenção, é o aumento do pauperismo. A tendência – a curto, médio e longo prazos – é a deterioração do bem-estar social dos trabalhadores. Estudos do Banco Mundial (Bird) atestam que 100 milhões de pessoas passarão a viver em condições miseráveis. Segundo Robert Zoellick, presidente do Bird, "os grupos mais pobres e vulneráveis correm os riscos mais sérios de sofrer mais com estas crises. Em alguns casos, os danos poderão ser permanentes".

 

A distribuição desigual de renda entre ricos e pobres também irá se aprofundar com a crise. Este abismo, é importante reconhecermos, vem aumentando muito antes da eclosão dos atuais eventos econômicos e financeiros; ele remete-se aos anos gloriosos do neoliberalismo. Um relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) divulgado recentemente constata que a desigualdade entre pobres e ricos cresceu 7% no período de meados de 1980 a meados de 2000. A OIT verificou o mesmo crescimento das desigualdades sócio-econômicas no período de 1990 e 2005. Esta expressão da "questão social" foi averiguada tanto dentro dos estratos sociais dos países quanto entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas.

 

Por fim iremos abordar um terceiro efeito sócio-econômico da crise sobre a "questão social". O aumento dos preços dos alimentos, estimulado pelo aumento dos preços dos combustíveis e dos insumos agrícolas, tem crescido muito ultimamente. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a inflação dos alimentos foi da ordem de 52% entre 2007 e 2008. A conseqüência desta inflação é, ainda de acordo com a FAO, e a perda do poder aquisitivo das camadas populares e o ingresso de 75 milhões de indivíduos nas fileiras mundiais da desnutrição, que hoje são estimadas em 923 milhões de pessoas.

 

O agravamento de todas estas expressões da "questão social", com destaque para a fome, tem alarmado as elites mundiais, preocupadas com os seus possíveis desdobramentos políticos. Por isso, diversos organismos internacionais multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, têm se esforçado, nos últimos tempos, em criar programas focalizados e assistencialistas de intervenção na "questão social", com o objetivo de promover o alívio da pobreza e o controle social sobre as classes subalternas. Ramiro Lopez da Silva, funcionário do programa de alimentos da ONU, resume bem a atual preocupação das classes dominantes com a "questão social" quando declara o seguinte: "se a resposta à crise não for eficaz teremos sérios problemas de insegurança". A mesma opinião é compartilhada pelo presidente do Bird, que sugere que a alta dos preços dos alimentos agrava a fome e a pobreza e estimula a violência nos países subdesenvolvidos.

 

O diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, alerta que a atual crise possui diversas dimensões: "a crise financeira acrescenta uma crise às crises que já existiam. Ao nos concentrarmos na crise financeira não podemos nos esquecer das outras duas [as crises alimentar e energética]". Louise Arbour, alta comissária para os direitos humanos da ONU, acrescenta que, a todas estas três crises, outras podem vir a se somar, atingindo outros direitos básicos das populações. Tudo irá depender do tipo de reação política a ser tomada contra a crise. Segundo suas próprias palavras, "um fracasso em agir de forma abrangente pode levar a um efeito dominó, colocando em risco outros direitos fundamentais, como saúde e educação".

 

Todavia, nem todos os dirigentes das grandes potências têm a mesma percepção e avaliação a respeito da crise. Alguns governantes europeus, em especial o primeiro ministro britânico, Gordon Brown, e o presidente da França, Nicolas Sarkozy, têm dado declarações no sentido de defender ações um pouco mais estruturais para debelar a crise. Ambos os líderes europeus, cada um ao seu estilo, afirmam que é necessária a construção de uma nova arquitetura financeira global. Enquanto Brown fala em um "novo acordo de Bretton Woods", Sarkozy afirma que "é necessária uma refundação global do capitalismo, baseada em valores que ponham as finanças a serviço dos negócios e dos cidadãos, e não vice-versa. O sistema deve ser completamente reformulado".

 

O que faz, então, os setores dominantes diante da crise? É preciso notar que as elites têm se movimentado com certa rapidez e diversas medidas vêm sendo implementadas para mitigar os efeitos mais deletérios da crise sobre a "questão social". Diante deste quadro de elevação da pobreza e da miséria dos trabalhadores, o Bird, por exemplo, está liberando imediatamente US$ 800 milhões para o alívio da situação, e outros US$ 1.2 bilhões poderão ser liberados caso a crise piore. À primeira vista, o valor bilionário impressiona, mas, colocando-o em perspectiva, podemos dizer que ele é ínfimo diante da tragédia social provocada pelo neoliberalismo. Jacques Diouf, diretor da FAO, acredita que são necessários cerca de US$ 30 bilhões anuais para recuperar os sistemas agrícolas nos países periféricos, e cerca de US$ 40 bilhões para a compra de 250kg de grãos para cada família pobre, quantidade suficiente para saciar suas necessidades alimentares básicas em um ano.

 

Como vimos no início do artigo, a doação das nações centrais às suas principais organizações econômicas e financeiras envolve quantias astronômicas. Se somarmos as ajudas dos EUA e da UE contabilizaremos algo como US$ 7 trilhões, o que, convenhamos, não é pouco. Um outro fator que também impressiona é a rapidez com que a doação foi negociada e executada. Em pouco mais de um mês, trilhões de dólares foram levantados e emprestados para poucas dezenas de grandes corporações multinacionais, ao passo que o cumprimento dos objetivos da Declaração do Milênio da ONU – dentre eles a erradicação da miséria, da fome, do analfabetismo e a garantia da sustentabilidade ambiental do planeta –, ratificada em 2000 por todos os seus países membros e com um custo estimado em centenas de bilhões de dólares, está previsto somente para o ano de 2015.

 

Ou seja, quando se trata de prover recursos para as corporações rentistas, os governos não hesitam em tomar rápidas medidas e destinar vultosas quantias, sem se preocupar com os impactos fiscais de tais medidas. Mas, quando se trata de aprovar gastos para o combate de importantes expressões da "questão social", a morosidade na tomada de decisões e a parcimônia dos provimentos são a regra geral, o que demonstra o caráter classista do Estado. Como afirma Somavía, "se temos enormes recursos para resgatar o sistema financeiro, não podemos dizer que não há esses recursos para salvar o povo, porque é o povo que vai sofrer os danos da crise". Em coro com a declaração do diretor-geral da OIT, Laís Abramo, diretora do escritório da OIT no Brasil, diz que "da mesma forma que os Estados estão se mobilizando para salvar o sistema financeiro, eles também precisam se preocupar em proteger os trabalhadores".