Paulo Passarinho
Engana-se o leitor que imaginar que irei tratar neste artigo de lições relativas à presente crise que assola as economias consideradas as mais desenvolvidas do mundo.
Quero abordar uma outra crise, muito perto de todos nós, latino-americanos, e que se relaciona obviamente aos processos de liberalização financeira – origem da atual crise global –, mas que guarda especificidades e conseqüências muito mais diretamente relacionadas à nossa realidade.
Vou me referir à crise do projeto neoliberal no nosso continente, duramente golpeado eleitoralmente em quase todos os nossos países, mas que continua em curso, e com vigor, especialmente aqui no Brasil, com as políticas cambial, monetária e fiscal mantidas de acordo com o figurino recomendado por bancos e transnacionais. Para falar o mínimo, e não adentrar em considerações sobre o que vem sendo feito em outras áreas das políticas públicas, relacionadas aos setores, por exemplo, agrário e agrícola, meio-ambiente, petróleo, educação ou de estradas de rodagem.
Certamente, pelas dimensões e complexidade de nossa economia, esta é uma situação que deve causar apreensão aos nossos vizinhos. O Brasil é hoje a mais forte retaguarda de defesa desses interesses corporativos financeiros em nosso continente. Os recentes episódios envolvendo o governo Lula com os interesses da construtora Odebrecht e a pendência com relação a um financiamento do BNDES, para uma obra que apresentou graves problemas aos equatorianos e ao seu governo, é apenas um exemplo do papel desempenhado pelo governo brasileiro.
O fato de o governo do Equador ter notificado a Câmara de Comércio Internacional, instância juridicamente reconhecida como legal para a resolução de qualquer controvérsia em relação ao contrato de financiamento para a construção da hidrelétrica S.Francisco, contestando uma dívida de US$ 242,9 milhões, foi considerado um ato desrespeitoso pelo Itamaraty, que chamou de volta ao Brasil o nosso embaixador naquele país.
Podemos afirmar ser este um movimento das "tropas de infantaria" do Itamaraty, em prol da transnacional brasileira. A "artilharia" ficou por conta de setores dominantes da "imprensa livre" tupiniquim, que difundem a versão mentirosa de um suposto calote do governo de Rafael Corrêa. A rigor, apenas uma parcela desse financiamento já venceu, tendo sido paga pelo governo do Equador em setembro, no valor de US$ 15 milhões, e de acordo com o cronograma de pagamento previsto no contrato firmado. A pendência que agora será arbitrada pela Câmara de Comércio Internacional é relativa ao pagamento restante do financiamento, concedido para uma obra que simplesmente ruiu, e necessitará ser refeita. A próxima parcela a vencer desse financiamento será na data de 29 de dezembro desse ano. Não há, portanto, nenhum atraso ou calote nos compromissos do Equador em relação ao BNDES.
Contudo, os trabalhos dessa instância de arbitragem serão complexos.
No último dia 20 de novembro, foi formalmente entregue ao presidente Rafael Corrêa as conclusões da Comissão de Auditoria Integral do Crédito Público (externo e interno), formada especificamente para investigar todos os detalhes das centenas de contratos de endividamento firmados ao longo de anos por governos anteriores, e sobre os quais pesavam fortes indícios de irregularidades.
As conclusões da Comissão apontam que no longo curso do processo de endividamento do Equador, induzido pelos interesses de instituições financeiras privadas e com o franco apoio e pressão de organismos como o FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, inúmeras ilegalidades e irregularidades foram cometidas. Cláusulas ilícitas, vícios contratuais, taxas de juros exorbitantes, cobrança de comissões indevidas, operações simuladas de contratação de obras ou serviços, estatizações de dívidas privadas foram alguns dos problemas documentados e comprovados. O contrato de financiamento da obra da Odebrecht não é uma exceção em meio a tantas características irregulares. E tudo isso não teria sido possível sem a anuência e conluio direto entre as autoridades e altos dirigentes do país e os interesses dos credores.
A Comissão também relacionou todo esse processo à adoção de políticas liberalizantes adotadas pelo Equador, e de interesse dos países mais ricos – tendo os Estados Unidos à frente – e de suas empresas. Redução do papel do Estado na economia e nas tarefas de regulação do capital; privatizações; aberturas comercial, financeira, produtiva e tecnológica são alguns dos exemplos dessas políticas.
A Comissão também propôs uma série de medidas de suspensão de pagamentos relativos a esses contratos, e o questionamento jurídico dos mesmos, além da denúncia política, essencial para a mobilização popular que se faz necessária para uma mudança definitiva nos rumos do Equador nas suas relações com a dita comunidade financeira internacional.
Internamente, a Comissão recomenda a execução de ações penais, cíveis e administrativas contra as autoridades públicas do Equador, envolvidas neste processo que perpassou vários governos anteriores ao de Corrêa.
Esta é a primeira lição que destaco, lembrando que aqui no Brasil temos de levar à frente processo semelhante, inclusive em obediência à Constituição Federal, que em suas Disposições Transitórias determina que processo de auditagem sobre o nosso endividamento seja realizado. Além disso, por iniciativa do Deputado Ivan Valente, do PSOL de S.Paulo, já foi obtido o número mínimo de assinaturas para viabilizar a instalação de uma CPI das Dívidas. Ambas as iniciativas são hoje barradas de viabilização pelos interesses predominantes no governo Lula, e que querem bem distante propostas dessa natureza, para que a "governabilidade" do país não seja prejudicada.
Deve ser por essas e por outras que a mídia global e hegemônica dentro do país prefere o caminho da demonização de estadistas como Rafael Corrêa e a mera veiculação de mentiras vulgares, para a desinformação do nosso povo.
A outra lição que aqui quero lembrar, também ocorreu no último dia 20 de novembro, com a aprovação pelo Senado argentino da lei de nacionalização dos ativos de dez fundos de pensão independentes. Criados no auge da febre neoliberal na Argentina, as AFJPs – Administradoras de Fundos de Pensão e de Aposentadorias – concentravam no final de setembro recursos da ordem de 94 bilhões de peso, para assegurar o pagamento de pensões e aposentadoria aos argentinos que optaram por esses planos baseados na lógica da rentabilidade futura, a partir de aplicações financeiras de mercado.
Trata-se na verdade de um risco gigantesco, em meio a todas as incertezas e deformações que os mercados financeiros representam. A eclosão dos sintomas mais graves da crise financeira global fez com que esses fundos perdessem recursos nos últimos dois meses de forma acelerada e este fato precipitou a medida proposta pelo governo de Cristina Kirchner e agora aprovada pelo legislativo do país.
Irei voltar a esse assunto, especificamente sobre os fundos de pensão e seus riscos, particularmente em um país como o Brasil.
Mas fica o registro, de qualquer forma, da importância dessas duas medidas, que buscam sepultar as piores heranças da tragédia neoliberal no nosso continente, construir alternativas e resguardar os interesses de nossas populações, frente ao incêndio provocado pelas economias liberais dos países centrais.
27/11/2008