Paulo Passarinho
O presidente Lula sofreu muitas críticas pelo fato de aparentemente ter menosprezado os efeitos da crise econômica mundial na economia brasileira, ao comparar os riscos que sofreríamos a uma mera marola – aquelas pequeníssimas ondas que não assustam sequer aos estranhos ao mar.
Politicamente, podemos compreender o papel do presidente da República. Não cabe a ele a função de atemorizar a população com supostas conseqüências negativas que enfrentaremos. Ao contrário, sua responsabilidade maior é a de garantir a tomada de decisões que evitem o pior, e aliviem o trabalhador brasileiro do desemprego, da redução de sua renda e da precariedade dos serviços públicos.
E é justamente neste ponto que consideramos extremamente equivocada a posição assumida pelo governo Lula.
Sabe-se que Lula chegou à vitória eleitoral de 2002, em meio a uma crise econômica forte, com raízes no terrorismo político de seus adversários, alimentado por decisões políticas da área econômica do governo FHC, que prepararam todas as condições para o agravamento da conjuntura econômica no ano eleitoral. Redução dos prazos de vencimento dos títulos da dívida pública, elevação da taxa de juros e dolarização de boa parte da dívida mobiliária foram algumas das cascas de banana deixadas pela dupla Pedro Malan/Armínio Fraga, antes do encerramento do governo tucano e de irem trabalhar no setor financeiro privado.
Lula, como se sabe, ao invés de cumprir a sua saga de líder inconteste do modelo liberal, e iniciar a transição para um outro tipo de modelo econômico, optou por se compor com os interesses do bloco de poder que comanda o país, especialmente a partir do Plano Real – uma aliança entre o setor financeiro privado e as transnacionais. A rigor, optou por dar continuidade e sobrevida à política econômica em curso, e ao acordo firmado por FHC com o FMI.
A gestão de Lula introduziu mudanças, como, por exemplo, a unificação de uma série de programas compensatórios já existentes – sob o rótulo do Bolsa-Família –, com a ampliação dos recursos financeiros direcionados para essa finalidade, e a sistemática de concessão de reajustes reais para o salário-mínimo.
Contudo, a manutenção da política econômica obedeceu à lógica da busca de um tipo de governabilidade, a partir do apoio de seus antigos adversários, e na convicção de que a conjuntura internacional – extremamente favorável – seria capaz de produzir efeitos benéficos ao país.
Podemos dizer, assim, que Lula "deitou em berço esplêndido".
A mudança do quadro internacional permitiu que a partir de 2002 a balança comercial brasileira desse um salto. Saindo de um saldo positivo naquele ano de US$ 13,1 bilhões, em 2006 alcançamos um superávit de US$ 46,5 bilhões. Esses resultados comerciais permitiram que – apesar da conta de serviços apresentar uma elevação contínua – o saldo das transações correntes do país se mantivesse em uma trajetória de crescimento. Em 2002, tivemos um déficit em conta corrente da ordem de US$ 7,6 bilhões, mas em 2005 – com o saldo de US$ 14 bilhões – e em 2006 – com resultado positivo de US$ 13,6 bilhões – atingimos uma folga nas nossas contas externas que aparentemente, para muitos, indicava o acerto das opções do governo Lula. Essa folga, entre outras conseqüências, permitiu que o país experimentasse taxas de crescimento um pouco maiores que o passado recente, com impactos positivos na oferta de empregos, especialmente até a faixa de três salários-mínimos.
A partir de 2007, entretanto, o quadro se altera, por fatores externos, mas particularmente pelas características do próprio funcionamento da economia brasileira. A dinâmica de crescimento da economia brasileira - com altíssimas taxas internas de juros, e uma abertura financeira e comercial extremamente liberal - nos levou ao crescimento das importações, turbinado pela valorização do real. Naquele ano de 2007, não somente o saldo comercial recua para US$ 40 bilhões, como o resultado das transações correntes despenca para apenas US$ 1,5 bilhão.
Apesar dos sintomas mais graves da crise internacional já terem se manifestado no segundo semestre de 2007, o fato é que o governo brasileiro assumiu medidas apenas de caráter contracionista, buscando arrefecer o crescimento econômico, visando conter o "furor" das importações. Conselheiros econômicos de Lula, de orientação diversa como Delfim Neto ou Luiz Gonzaga Belluzzo, sugeriam a elevação espetacular do superávit primário, como forma de atenuar a ofensiva que o ministro do Banco Central poderia fazer, elevando a taxa de juros.
Ao mesmo tempo, Lula não se cansava de elogiar Henrique Meireles, mostrando claramente que a mudança substantiva da política econômica não estava em discussão. Com isso, o que vimos foi que a taxa básica de juros se manteve em 11,25% entre setembro e março de 2008, sendo elevada paulatinamente, a partir de abril do ano passado, até atingir a 13,75% ao ano, em setembro.
Os resultados são trágicos. As contas externas fecharam 2008 com o recorde deficitário da conta de serviços e rendas de US$ 53 bilhões, puxado especialmente pelas remessas de lucros e dividendos (US$ 33,9 bilhões). O saldo comercial do país continua em queda vertiginosa, fechando o ano em US$ 24,7 bilhões, e agora, no mês de janeiro desse ano, voltamos a apresentar déficit comercial, fato que não ocorria desde 2001. E com esses resultados, o déficit das transações correntes em 2008 saltou para US$ 28,3 bilhões, o que nos levará a uma maior dependência de capitais estrangeiros para fechar o rombo externo.
É dentro desse quadro que devemos relativizar, por completo, os efeitos da redução da taxa básica de juros, decidida pelo Banco Central, agora em janeiro, em 1%, baixando-a para 12,75%. Não somente é uma taxa indecente, como 1,5% superior à taxa que já estava em vigor no segundo semestre de 2007, quando o mundo já começava a sentir os efeitos da lambança financeira produzida pelos liberais.
Os terríveis efeitos na produção e no emprego se manifestam com força. A estimativa do próprio Ministério do Trabalho, com base nos dados do Caged, estima que o país perdeu 600 mil postos de trabalho, em dezembro. A produção industrial caiu 12,4% em dezembro, em relação a novembro, e é a terceira queda consecutiva neste indicador, acumulando um recuo industrial no último semestre do ano passado de quase 20%.
O problema, portanto, não é a imagem da marola, usada por Lula, para defender as opções do seu governo, e também para tranqüilizar os brasileiros.
O grave é o próprio Lula, as suas opções de política econômica e os seus mais importantes colaboradores, formais ou não.
05/02/2008