J. Carlos de Assis*
Os próximos dez anos serão radicalmente diferentes dos dez últimos por força dos novos rumos que tomará a civilização mundial. Não me refiro apenas a mudanças de padrão tecnológico, que se tornaram triviais ao longo das últimas três décadas. Refiro-me a uma mudança de paradigma na estrutura básica do sistema capitalista ocidental, apoiada essencialmente no princípio de propriedade privada e de livre iniciativa, pretensamente sob restrição única de forças "impessoais" do mercado.
Entre a década passada e a que virá se destacará, para os pósteros, a catástrofe sem precedentes da crise financeira de 2008. Ela continua em curso, sem indicação segura de uma recuperação a curto prazo das principais economias ocidentais e do Japão. No epicentro dela está a crise bancária e financeira dos Estados Unidos, igualmente sem solução à vista. E é justamente aí que podem ser detectados sinais antecedentes de uma mudança de paradigma.
O sistema bancário comercial esteve presente desde os primórdios do capitalismo como uma força de apoio ao aparato produtivo e ao desenvolvimento nacional (ou imperial). Seu papel fundamental, mais do que converter poupança financeira de longo prazo em investimento de risco, consiste em "criar" dinheiro a partir de um fluxo recorrente de depósitos à vista. É este dinheiro "novo", atuando ao lado de dinheiro corrente, que duplica a liquidez e permite à economia crescer.
Essa máquina de crescimento parou nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha. No caso norte-americano, ela está sob o bloqueio de títulos podres impagáveis, da ordem de mais de 3,6 trilhões de dólares. Uma solução de emergência para o sistema consistiu em injetar trilhões de dólares de recursos públicos para mantê-lo boiando. Outra, a autorização para que os empréstimos podres, mesmo impagáveis, sejam mantidos em carteira até o vencimento nominal.
Na realidade, o sistema bancário comercial norte-americano está estatizado pelo lado do passivo, através de capitalização pelo Tesouro, empréstimos a juros de zero por cento pelo FED, e garantias públicas a aplicações da clientela. No entanto, continua privado pelo lado do ativo. Seus executivos têm ampla liberdade para decidir sobre o que fazer com o dinheiro público que lhe é repassado de forma quase graciosa pelo Governo, além de se premiarem com bônus bilionários.
O que faz um executivo de banco "eficiente" nessa situação? Em lugar de emprestar à produção, que é uma atividade arriscada e de longo prazo, ele se concentra em operações diárias de câmbio (afinal, 2 trilhões de dólares mudam de mão todos os dias), intermediação de bônus e commercial papers (o risco fica com as grandes corporações emissoras e ele retém uma comissão) e derivativos (o risco fica com a contraparte). Dessa maneira, consegue altos lucros com dinheiro público, sem risco, para ir abatendo com eles os títulos podres.
O único problema com esse sistema é que ele não é capitalismo. O risco é inerente à atividade capitalista, e sua avaliação prévia pelo banqueiro ajuda no processo de seleção das melhores iniciativas no processo produtivo. Ademais, a atividade bancária, em si, é um jogo de risco, e se o banqueiro erra ele é punido com perda de capital ou falência. É, pois, inconcebível conceitualmente um banco que tem grandes lucros seja protegido pela cláusula não escrita de que é "grande demais para quebrar".
Pois isso é justamente o que se tornaram os 19 principais bancos comerciais dos Estados Unidos, "grandes demais para quebrar". Os maiores deles, Citigroup e Bank of America, estavam no topo da lista de quebra iminente, logo depois que o Lehman Brothers foi deixado ir à lona, quando as autoridades financeiras de Bush recuaram assustadas com as conseqüências internas e mundiais do colapso, e determinaram um plano geral de salvação que acabou protegendo todo o sistema com dinheiro público.
Esse caso típico de privatização dos lucros e socialização dos prejuízos, por mais repugnante que seja, não tinha como ser evitado em situação de emergência. Fosse Obama no lugar de Bush, faria a mesma coisa. Caso contrário, todo o sistema capitalista mundial desabaria, com efeitos devastadores sobre a organização da própria sociedade. Contudo, um repto muitas vezes maior está pela frente: se o Governo tirar do sistema os recursos públicos e as garantias, ele quebra; se mantiver as concessões, ele continuará fazendo grandes lucros, distribuindo dividendos e pagando bônus bilionários (US$ 20 bilhões só do Morgan este ano) com base em recursos do contribuinte geral.
Até 2012 a banca mundial terá de substituir 7 trilhões de dólares de passivo de curto prazo por aplicações de mais longo prazo. Grande parte dessa massa gigantesca de dinheiro está sob garantia de tesouros públicos. Se as garantias forem retiradas, muitos bancos não conseguirão fazer a rolagem dos passivos. Se o fizerem, será de forma bem mais onerosa. Poderão compensar os maiores custos cobrando mais por serviços ou aumentando as taxas dos empréstimos. Em qualquer hipótese, a economia real será estruturalmente afetada.
Não há perspectiva de volta ao padrão normal de financiamento à produção na medida em que os bancos aprenderam a ganhar muito dinheiro sem isso. A conseqüência pode ser uma longa recessão nos países industrializados de ponta. Enquanto isso, do outro lado do mundo, China e Índia são praticamente as duas únicas grandes economias em processo de crescimento rápido. Elas têm em comum dois fatores essenciais, que faltam aos países avançados ocidentais e ao Japão: planejamento centralizado, sistema bancário estatal descentralizado, e um mercado interno com forte potencial de crescimento.
Na interação da Geopolítica e da Geoeconomia mundiais, é a dinâmica do processo, não sua fotografia estática, que deve ser levada em conta. Os Estados Unidos e a sociedade norte-americana podem perfeitamente aceitar três ou quatro anos de crise na expectativa de uma recuperação forte posterior. O que se tem em vista, porém, com o novo padrão bancário e financeiro, é uma estagnação indefinida. Nos próximos três anos o máximo que a China pode fazer é tornar-se uma economia equivalente a metade da norte-americana. Contudo, nos próximos dez, considerando que ela deverá continuar crescendo a altas taxas e os Estados Unidos estarão ainda flutuando no fundo do poço, poderá equiparar-se a ela.
E poderá ultrapassá-la em seguida. E seguir adiante. Seus instrumentos para isso continuarão sendo muito poderosos: planejamento e sistema bancário estatal descentralizado, no campo do financiamento da produção; e iniciativa privada, no campo da produção propriamente dita. Os chineses e em grande parte os indianos conseguiram isso vindo do socialismo para o capitalismo. Deu certo. Num plano abstrato, para que os Estados Unidos dêem certo, devem refazer o caminho na direção oposta, isto é, do capitalismo para o socialismo. Numa palavra, estatizar seus bancos e adotar o planejamento centralizado.
Marx não deveria admirar-se desse resultado na medida em que se enquadra perfeitamente em suas leis dialéticas. Contudo, seria como um terremoto revolvendo as próprias bases da sociedade norte-americana (embora não a européia, nem a japonesa). Para os Estados Unidos, o país da livre iniciativa por excelência, aceitar a presença do Estado como planejador central e como árbitro dos financiamento produtivos constitui uma violência sem paralelo. O Congresso resistiria até o último neoliberal, mesmo que à custa do colapso da potência norte-americana sob os escombros de uma cidadania aniquilada por lobistas.
*Economista e professor, autor de "A Crise da Globalização".