UM INTELECTUAL EM SEU LABIRINTO

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Para Fiori, a escola da Unicamp teria tido relevância nos anos 1970, enquanto centro capaz de reinterpretar, a partir da herança cepalina, o desenvolvimento capitalista no Brasil. Mas teria perdido o fôlego após o Plano Cruzado. Para contestá-lo, é preciso evitar confundir estratégias de desenvolvimento, no caso o desenvolvimentismo, com as teorias variadas que lhes dão suporte.

Ricardo Carneiro 

No último mês, os leitores do jornal Valor tomaram conhecimento, por meio da coluna Opinião, de dois artigos de José Luís Fiori - O desenvolvimentismo de esquerda de 29/02/2012 e Desenvolvimentismo e Dependência de 29/03/2012 - acerca de um tema cujo conteúdo costumava ser, no passado, bastante caro aos economistas progressistas: o desenvolvimentismo.

Ressuscitado contemporaneamente pela falência das políticas de inspiração liberal e pela retomada do crescimento no Brasil com base em outro perfil de políticas econômicas, o desenvolvimentismo desperta polêmicas como nos artigos apontados. Neles, Fiori busca criticar essas concepções referindo-se tanto ao seu conteúdo prático, enquanto estratégia de desenvolvimento, quanto às reflexões intelectuais que lhe dariam suporte, originadas em grande medida na escola de Economia da UNICAMP. 

Seus argumentos poderiam ser resumidos da seguinte forma: a escola da UNICAMP teria tido relevância nos anos 1970, enquanto centro de pensamento capaz de reinterpretar, a partir da herança cepalina, o desenvolvimento capitalista no Brasil. Ao longo do tempo, contudo, mormente após meados dos anos 1980, com o fracasso do plano Cruzado, teria perdido seu fôlego analítico. Hoje em dia, a sua produção seria marcada por análises setoriais e sua contribuição para o entendimento dos rumos do capitalismo brasileiro seria acanhada. Na verdade a formação de economistas "heterodoxos" e quadros burocráticos teria se tornado a sua principal marca. No artigo seguinte Fiori afirma que desde os anos 1960, quando o dinamismo do capitalismo brasileiro pôs por terra as teses estagnacionistas dos cepalinos - leia-se de Celso Furtado - o desenvolvimentismo de esquerda teria perdido a capacidade interpretativa dos rumos desse capitalismo.Sem uma base teórica consistente, teria se convertido ao varejo keynesiano e suas deblaterações (sic) macroeconômicas. Para ele, a melhor resposta a isto teria sido a teoria da dependência e não a revisão crítica das ideias da CEPAL cujo marco é o artigo clássico de Maria da Conceição Tavares e José Serra "Além da estagnação". Este artigo, aliás, pode ser tomado como um embrião da escola de Campinas que ao longo dos anos 1970 criará um novo paradigma para a interpretação do desenvolvimento brasileiro, superando as ideias da CEPAL mas, partindo delas. Para contestar as críticas de Fiori é preciso, desde logo, evitar confundir estratégias de desenvolvimento, no caso o desenvolvimentismo, com as teorias variadas que lhes dão suporte. Por sua vez, é imperativo ter em conta os momentos ou conjunturas históricas particulares nos quais essas estratégias e teorias ganharam momento. Isto é crucial para evitar o equívoco de atribuir o ascenso ou declínio histórico de ambas aos seus méritos puramente intelectuais. Certamente os trinta anos que se iniciam nos anos 1980 e que correspondem à ascensão do neoliberalismo teriam sido difíceis para o desenvolvimentismo e as teorias econômicas críticas que lhes dão suporte, independentemente dos seus méritos internos ou da qualidade dos economistas aos quais inspiraram. 

No que tange ao espaço das ideias propriamente dito e às concepções teóricas cabe esclarecer que a escola de Economia da UNICAMP jamais abriu mão da sua formação crítica e de suas referências fundamentais como Marx, Schumpeter, Keynes, dentre outros clássicos que teorizaram sobre o capitalismo. Eles continuam a ser leitura obrigatória nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado, constituindo uma marca peculiar e permanente dessa escola. Essa postura sempre se combinou com o estudo e discussão de economistas contemporâneos, heterodoxos e ortodoxos, afinal o objetivo sempre foi formar economistas críticos e não religiosos. No plano da análise histórica é absolutamente incorreto e superficial afirmar que as preocupações recentes do IE/UNICAMP se centraram na discussão de questões setoriais ou macroeconômicas. Alguns temas de pesquisa que orientaram o esforço de grande parte do professorado e alunos de pós-graduação do IE nos últimos anos desmentem essa afirmação. Elas se guiaram pela agenda proposta pelo momento histórico caracterizado, desde os anos 1980, por um padrão de desenvolvimento capitalista dominado pelas finanças. Faz parte dessa agenda, por exemplo, as análises sobre a nova ordem econômica internacional, aliás, parte delas publicada em livros organizados por Fiori. 

Outros temas têm concentrado o esforço de pesquisa e reflexão no IE tais como: a abertura financeira e suas implicações sobre a vulnerabilidade externa e o financiamento da acumulação de capital; a internacionalização e especialização da estrutura produtiva; a redefinição do papel do Estado na economia por meio das privatizações, e do perfil da receita e gasto públicos; a evolução da questão regional e urbana; as transformações do mercado de trabalho, a distribuição da renda e as políticas sociais. Claro que há também uma agenda de pesquisa relativa a temas macroeconômicos. Mais do que necessária ela é imprescindível num contexto econômico caracterizado pela liberalização financeira, no qual as taxas de câmbio e de juros assumem papel muito mais relevante do que no passado, nas economias reguladas do regime de Bretton Woods. Essa agenda de pesquisa levada adiante pelos professores do IE motivou a criação, por uma parcela dos mesmos, da Rede Desenvolvimentista com o objetivo de abrigar o debate sobre o desenvolvimento brasileiro. Por meio do documento "O desenvolvimento brasileiro: temas estratégicos" procurou-se sintetizar os resultados de reflexões realizadas nos últimos anos no IE propondo-os para uma discussão mais ampla com professores e demais intelectuais das mais variadas instituições, o Fiori inclusive. Causa espécie, portanto, que não tenha havido por parte do Fiori nenhuma manifestação sobre o conteúdo desse documento. Atento apenas ao mundo das ideias do passado, ele emerge do seu labirinto tão-somente para adjetivar uma produção intelectual que desconhece.

Os professores do IE-UNICAMP possuem uma larga tradição de militância partidária e de participação em governos de diferentes orientações políticas. Isto deveria ser visto como um fato positivo, pois traz para a Universidade um conjunto de questões e informações que estão fora do seu alcance imediato. Essas atividades, mormente nas Ciências Sociais, criam um antídoto contra o escolasticismo que tanto desagrada Fiori e a todos nós. A despeito disso ele é incapaz de identificar não só a relevância do debate recente, que tem como pano de fundo o ressurgimento do desenvolvimentismo, como também de distinguir as diferentes correntes que dele participam.

Neste debate, de um lado está o novo-desenvolvimentismo, cujo centro de irradiação é a FGV-SP, que privilegia as dimensões macro das políticas econômicas e subordina a elas as políticas de desenvolvimento dando maior peso ao papel do mercado. Esta corrente prioriza o desenvolvimento das forças produtivas e o mercado externo, entendendo que a distribuição da renda decorrerá da primeira, mas não automaticamente, sendo necessário a implementação de políticas que garantam a transferência de ganhos de produtividade aos salários. 

De outro lado, coloca-se o social-desenvolvimentismo, com origem na UNICAMP e UFRJ. Como a qualificação sugere, o social é o eixo do desenvolvimento e isto se daria pela centralidade do mercado interno via a ampliação do consumo – de bens públicos e privados - das massas. Nessa vertente se propõe a subordinação das políticas macroeconômicas às de desenvolvimento e o maior peso do Estado. O desenvolvimento das forças produtivas seria, nesse caso, um meio para atingir o objetivo almejado. Imerso em seu labirinto intelectual, Fiori é incapaz de enxergar essas diferenças e põe todo mundo no mesmo saco.

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).